É daquelas mulheres moçambicanas de fibra que
ousam fazer e dizer coisas que, muitas vezes, o Governo e as multinacionais não
gostam. Diz: “em democracia, eu tenho o direito e a liberdade de expressar
livremente, quer o senhor goste ou não, quer o senhor seja ou não representante
do Governo”. Na entrevista, concedida, Alda Salomão, directora executiva do
Centro Terra Viva (CTV), afirmou que a tensão político-militar é apenas uma
dimensão das “várias guerras” que o País vive. Entende ela que não estamos
suficientemente tranquilos, como País, para falar do desenvolvimento, porquanto
estamos todos reféns da instabilidade, incluindo as instituições públicas. Nas
linhas que se seguem, Alda Salomão analisa ainda o primeiro ano do novo
executivo sobre o qual afirma: “dá a impressão de que não avançamos grande
coisa em termos das mudanças que muitos de nós esperá- vamos ver”. Lamenta, por
outro lado, que a filiação partidária em Moçambique se tenha tornado num factor
de discriminação, marginalização e estigma e questiona “quem disse que ser dum
partido diferente da Frelimo significa ser inimigo?”.
Sendo o CTV uma organização de advocacia em prol
da boa gestão do ambiente e da boa utilização dos recursos naturais, qual é,
para vocês, o estado da nação, nestes domínios? O CTV não tem a capacidade de avaliar o estado
completo da nação, por isso comentei com um dos órgãos de comunicação que nos
próximos relatórios sobre o Estado geral da nação o Presidente da República
apresente também a situação dos recursos naturais, porque é importante sabermos
como estamos do ponto de vista ecológico. Mas desde 2002 que o CTV trabalha
nestas questões.
Então, nestes 14 anos, quais têm sido os temas
mais fracturantes na gestão ambiental e dos recursos naturais?
Certamente que a questão do desflorestamento é um
assunto sério e com causas conhecidas. Há vá- rios estudos que mostram que os
factores estão muito relacionados com a sobrevivência da maior parte das
pessoas. Vou dar um exemplo: agricultura itinerante. A nossa tecnologia
agrícola ainda é desse tipo, portanto, as pessoas cortam árvores para abrir espaços
para a agricultura e vão transitando de espaço em espaço, à medida que esgotam
a qualidade dos solos num determinado terreno, passam para outro terreno porque
aquele tem de ficar em poisio e no terreno para o qual transitam devem também
cortar a árvore. Então, tecnologia agrícola precisa de ser mudada. Mas quem
afecta a floresta, afecta também a fauna. Por outro lado, a maior parte das
pessoas ainda usa o carvão como fonte energética e, nos relatórios de avaliação
do sector florestal, a produção do carvão é tomada como uma das principais
causas de desmatamento. Ora bem, é preciso resolver esse problema. Não basta
dizer as pessoas para pararem de cortar árvores, é preciso indicar como elas
vão então suprir as suas necessidades energéticas. Certamente que se lembra do
programa “Um Líder, Uma Floresta”, mas então, em que medida é que esse programa
foi desenhado também para ajudar os líderes comunitários a se organizarem no
sentido de terem espaços reservados para o desenvolvimento de espécies
florestais para a produção de lenha e carvão. É que as florestas comunitárias
terão os diversos usos que têm as florestas de uma maneira geral. Umas serão
para a conservação, outras serão fontes energéticas, outras para colecta de
material de construção, então, é preciso organizar a utilização de recursos,
mas como digo, é preciso levar estas estratégias de desenvolvimento sustentável
para a base, para onde a maior parte da pessoas está porque é essa pobreza que
depois resulta numa grande pressão nos recursos porque as pessoas não têm
outras alternativas. Não têm fonte de energia eléctrica, não têm acesso a gás,
o único recurso que tem para usar como fonte de energia é a árvore.
Disse que é preciso levar as estratégias de
desenvolvimento sustentável para a base. Sente que isso está a acontecer e que
há uma governação participativa no domínio do ambiente e recursos naturais?
Nós vivemos num País em que do ponto de vista
político-legal estamos muito bem no que respeita a princípios de boa
governação, um dos quais é a gestão participativa da terra e outros recursos.
Significa que, em termos de ditames constitucionais, de disposições legais,
estratégias inclusivamente políticas, nós não poderíamos estar melhor. Há
muitos países que não têm a protecção político-legal que temos no sentido de
assegurar que os processos tenham envolvimento de todos os cidadãos. Significa
que não depende da vontade do governante incluir ou não incluir os cidadãos no
processo de tomada de decisões. Não é discricionário dizer que eu vou ou não
envolver os cidadãos, é legalmente obrigatório envolvê-los.
Há envolvimento ou não? O problema é, justamente,
o facto de que todos os actores não estão claros sobre esta obrigatoriedade
legal. Os representantes do Estado, alguns deles, pensam que não têm a
obrigação de envolver. Pensam que podem envolver apenas quando lhes convêm.
Essa é uma componente do problema que precisa de ser abordada: nós precisamos
de ter representantes da administração pública que percebam que os seus actos
são guiados e orientados pelos ditames e pelas normas da legisla- ção e se a
legislação impõe que os processos de tomada de decisão sejam participativos, os
representantes do Estado não têm o espaço de não criar oportunidade para
participação, nos moldes inclusivamente que a legislação estabelece como
consultas públicas, consultas comunitárias, dar informação atempadamente,
informação relevante, tudo isso está prescrito na legislação. Esta é uma
componente que os nossos governantes precisam de perceber em todos os níveis,
não é só os ministros, porque quando ouvimos os pronunciamentos do presidente
da República e dos ministros só se fala de governação inclusiva e
participativa. Ora bem, esse discurso tem de ser repetido até a base com
consciência do que ele implica. Dizer que vamos promover ou somos por uma
governação inclusiva e participativa tem implicações de natureza prática,
significa que eu cidadão estou à espera de ver o meu governante a criar as
condições necessárias para que essa governação inclusiva e participativa se
possa materializar.
Terá dito
em 2015 que tínhamos chegado a um nível de impunidade pernicioso para o Estado.
Mantém essa tese ou alguma coisa mudou neste primeiro ano do governo Nyusi?
Neste momento só posso especular com base naquilo
que é a minha percepção dos pronunciamentos que temos estado a ouvir dos
representantes mais altos do Estado, a começar pelo presidente da Repú- blica
que dá indicações de ter uma grande preocupação em relação à legalidade, ao
rigor na utilização dos recursos do Estado, na actuação da administração
pública. Mas não é só ele, nós ouvimos ao longo do ano pronunciamentos do
ministro da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural que nos deixaram muito
agradavelmente surpreendidos, porque há muito tempo que não ouvíamos um
governante e comprometer-se, publicamente, para corrigir as irregularidades no
sector e organizar a maneira como os recursos naturais e o ambiente estão a ser
geridos no País. Já é um bom passo que tenhamos tido pronunciamentos dos
governantes nesse sentido porque ao fazerem esses pronunciamentos sabem que
estão a expor-se ao escrutínio público. Nós havemos de avaliá-los em função da
maneira como eles vão conseguir ou não transformar os seus pronunciamentos em
realidade. Quando um ministro diz que quer eliminar a caça ilegal, quer
eliminar a exploração ilegal de recursos florestais, quando um ministro diz que
vai corrigir as irregularidades que estão a ser cometidas no processo de
licenciamento do uso da terra para grandes investimentos, quando diz que os
processos de reassentamento resultantes de investimentos tem de ser processos
de desenvolvimento que respeitem os direitos dos cidadãos, são promessas muito
sérias que estes governantes estão a afirmar. Quando eu digo que o nível de
impunidade é pernicioso para o Estado é que em última instância quem está a ser
prejudicado somos todos nós os cidadãos e as instituições que actuam em nosso
benefício. Portanto, quando nós temos uma irregularidade, as consequências vão
afectar muitas vezes não só a reputação do Estado porque dizemos que os agentes
do Estado não são sérios, não são moralmente íntegros, mas as consequências
também podem ser de natureza financeira. Por exemplo, se tiver de corrigir uma
irregularidade ou uma ilegalidade muito provavelmente esse acto de correcção
vai ter implicações financeiras para o Estado porque quem emite actos de
administração pública, licenças, autorizações, etc, é o Estado, então se se
constata que uma licença ou uma autorização emitida pelo Estado é ilegal, tem
de haver responsabiliza- ção em relação a isso e eu, cidadã que recebe a
licença, o que digo é que tenho uma licença de uma entidade pública com
competência para emitir a autorização. Portanto, se emitiu autorização deveria
saber o que estava a fazer, se emitiu de maneira incorrecta, eu quero ser
compensando pelos danos que isso me vai causar. Nós vivemos num País em que do
ponto de vista político-legal estamos muito bem no que respeita a princípios de
boa governação .
Outros pontos importantes sobre o funcionamento de
um Estado de Direito Democrático e, a esse propósito, vamos fazer uma ponte
para analisar o primeiro ano de governação do presidente Filipe Nyusi e um novo
Governo. O que lhe parecem os primeiros 12 meses?
Dá a impressão de que não avan- çamos grande coisa
em termos de mudanças que muitos de nós esperávamos ver. Temos uma situação
político-militar que nos põe a todos reféns e penso que de alguma maneira
paralisa a nossa percepção em relação à existência de condições e capacidade
para começarmos os grandes processos noutros sectores que o País precisa de
começar e que esperávamos que começassem com a tomada de posse deste novo
Governo, mas sem paz não se faz muita coisa. Estamos todos distraídos com este
assunto, mesmo que em alguns momentos pareça que o assunto está esquecido, etc,
mas sabemos que está lá. Eu não sei se há alguém que saiba em que sentido este
País está a caminhar do ponto de vista de estabilidade, de segurança, de entendimento
entre nós. Estamos a falar de gestão de recursos naturais, protecção da fauna,
da floresta, conferir maior segurança da terra, ouviram falar do programa
«Terra Segura», tudo isso são processos de organização e estruturação do
Estado. Tu estruturas o Estado em situação de insegurança militar? De
insegurança política? Eu não sinto que estamos suficientemente tranquilos, como
País, para falar do desenvolvimento neste momento, ainda estamos à espera de
ouvir falar de paz para retomarmos as nossas atenções para o desenvolvimento.
As próprias instituições parecem estar paralisadas também. É preciso mudar
mentalidades Mas quando o presidente Nyusi tomou posse transmitiu um discurso
de sossegar as pessoas, com garantias tipo tenham certeza de que os moçambicanos
jamais voltarão a viver sob espectro de guerra… Ele ainda não conseguiu começar
a fazer uma ligação entre os seus pronunciamentos e a prática. As promessas do
presidente da República não estão a ser materializadas, mas também é preciso
reconhecer a complexidade e a profundidade das reformas implícitas no
pronunciamento do presidente da República. Tudo o que o presidente disse e se
comprometeu a fazer implica que ele deveria ter a capacidade de encetar
reformas profundas para que o País mudasse de rumo e começasse a seguir
alinhado com aquilo que foi o seu pronunciamento: maior legalidade, maior
inclusão, maior participação, paz, respeito mútuo, respeito por posicionamento
e opiniões diferentes, etc, etc.
É preciso mudar as mentalidades. Eu dou um exemplo
concreto. Nós estamos a fazer trabalho em Palma, fazemos parte do processo em
que somos chamados a contribuir. Mas o Governo local está a dizer nos seus
comícios sobre os trabalhos do CTV
que “bom, nós aqui conseguimos desmantelar o colonialismo, mas ainda sobram
alguns inimigos, nomeadamente a oposição e organizações da sociedade civil, que
vêm para aqui perturbar o nosso trabalho”. Portanto, temos um governante a
equiparar-nos ao colonialismo. O que é que significa isso? Eu acho que nós
temos várias guerras, várias dimensões de instabilidade. Temos a instabilidade
político-militar, esta de que falamos todos os dias, mas não prestamos atenção
aos focos de instabilidade que nós temos na maneira como os diferentes actores
se relacionam mutuamente. Quando eu tenho um governante a dizer que as
organizações da sociedade civil são inimigas, está a dizer que vamos
afastá-las, marginalizá- -las e se for necessário vamos abatê-las porque é isso
que se faz com os inimigos.Eu não sei se a oposição é um inimigo e este é o
outro ponto que eu gostaria de colocar. É que a nossa filiação política, a
maneira como estamos a construir democracia neste País, faz com que nos
dividamos, nos confrontemos, nos olhemos como inimigos e não como cidadãos do
mesmo País com os mesmos direitos e mesmas responsabilidades e com as mesmas
oportunidades de contribuir para os processos do mesmo País. A filiação
político-partidária é hoje um factor de discriminação, marginalização, estigma.
Se tu és do MDM ou da Renamo, então, és inimigo. Quem disse que ser dum partido
diferente da Frelimo significa ser inimigo? Frelimo, Renamo, MDM seja lá quem
for, estão vinculados ao mesmo quadro legal. Os preceitos da Constituição deste
País aplicam-se tanto a Frelimo, a Renamo,
etc.
Que implicações para o País, essa politização? É
muito perigosa porque eu deixo de olhar e lidar consigo como pessoa e cidadão
igual a mim. O simples facto de você ser da Renamo e eu ser da Frelimo é factor
de distanciamento e de potencial conflito. Onde é que vamos chegar como País
com cidadãos divididos?
Que desafios para 2016, um ano que começa com seca
severa no sul de Moçambique e inundações no norte? Somos um País frequentemente
assolado por desastres naturais. Temos de encontrar uma forma de nos
organizarmos do ponto de vista de utilização dos nossos recursos, mas não só,
também do ponto de vista de organização e ocupação territorial e também do
ponto de vista de adaptação e evolução nas tecnologias que usamos para fazer
frente a estes fenómenos. Era previsível que fôssemos ter seca, é possível
prepararmo-nos para minimizar o impacto. Por exemplo, temos muita chuva no
norte, ou seja, temos comida a ser produzida no norte e temos gente quase a
morrer de fome no sul. Quer dizer, nós talvez não sejamos capazes de prevenir a
seca no sul, mas acho que somos capazes de prevenir que as pessoas da região
sul morram de fome por falta de comida. Somos capazes de nos organizar ao longo
do ano para termos reservas de água para que as pessoas não fiquem
completamente sem água porque não chove, pelo menos água para consumo humano,
para as pessoas não morrerem. Estou a falar dos instrumentos de gestão
ambiental que também nos ajudam a fazer face a desastres naturais e que talvez
tenhamos de ser mais vigorosos na utilização desses instrumentos, mais atentos
e mais oportunos na tomada das medidas necessárias para que quando os fenómenos
ocorrerem eles não sejam um desastre. Por outro lado, as nossas instituições
têm um papel a desempenhar. Houve, na província de Maputo, uma situação em que
areeiros barraram o curso de água do rio Incomati, fazendo com que os
agricultores a jusante não tenham água. Onde estão as instituições? Isto
lembra-me o assunto das demolições. Eu reconheço ainda que somos um País com muitas
dificuldades, mas não aceito o argumento de que temos falta de recursos e é por
isso que algumas coisas acontecem porque já não estamos em 1975. Já houve uma
evolução do ponto de vista de capacidade humana, financeira, instrumentos de
apoio à organização e tomada de decisões para nos permitir fazer as coisas
melhor do que estamos a fazer. Se não conseguimos gerir areeiros, o que vamos
conseguir gerir, 40 anos depois da proclamação da independência. Quarenta anos
depois não conseguimos gerir assentamentos informais na nossa capital. A nossa
capital está com uma cara deplorável do ponto de vista de ocupação de espaço.
Os nossos bairros perifé- ricos têm uma cara de miséria que já não justifica
terem nesta altura em que nós estamos. Continuamos a ter resíduos sólidos a
serem amontoados e depositados onde as crianças vivem onde as crianças brincam.
Nós não temos capacidade de fazer melhor do que isso? (SAVANA)
0 comments:
Enviar um comentário