Sempre com ideias próprias e distante de
paradigmas, Elísio Macamo apresenta a sua visão sobre o país.
Não vê problemas na descentralização proposta
pela Renamo e diz que não faz sentido que os governadores provinciais sejam
nomeados pelo Presidente.Disse ao jornal Público, de Portugal, em 2013,
que Moçambique é uma construção muito frágil. “É como um castelo de cartas que
pode ruir, no mínimo num sopro. Qualquer grupo de pessoas com vontade e com
meios pode inviabilizar um país como Moçambique”. O que falta ao nosso processo
institucional e democrático para que sejamos um país sólido, onde não haja esse
risco de desagregação?
Eu fiz esse comentário numa altura em que
havia fortes ameaças de guerra em Moçambique, algo que depois veio a
confirmar-se. Não há guerra, mas há uma situação militar muito crítica. A
questão que os jornalistas em Portugal estavam a pedir é que eu fizesse um
prognóstico em relação à guerra em Moçambique.Num Estado como Moçambique, e isso diz
respeito a qualquer Estado africano - qualquer Estado em formação - as
instituições não são sólidas, naturalmente. O Exército, a Polícia, todas
aquelas instituições que têm a missão de garantir a estabilidade de um país,
não são suficientemente fortes, de tal modo que qualquer grupo de indivíduos
que tenha um mínimo de organização e que tenha armas, sobretudo, está em
condições de inviabilizar, ou pelo menos de desestabilizar seriamente esses
países. Mas isso tem a ver com o facto de, apesar de muitos ainda não terem a
consciência disso, sermos um país muito jovem. 40 anos de independência não é grande
coisa no mundo e, depois, nós estamos sempre a ser comparados com países que
existem há séculos, cujo processo de formação foi tão problemático como está a
ser o nosso, aqui em África. Estamos em processo de constituição do nosso
Estado e nós estamos a fazer esse processo num contexto completamente diferente
do contexto em que estiveram os países europeus, na constituição dos seus
Estados.
Qual é esse contexto?
Só para dar um exemplo, talvez um pouco
polémico, nós estamos a formar os nossos Estados num momento em que a definição
de Estado inclui dar votos a toda a gente, independentemente do seu estatuto
social, educacional e qualquer outra coisa. Não estou a dizer que isso seja má
coisa, mas estou a dizer que quando os europeus criaram seus Estados, não o
fizeram nessas circunstâncias. Esse é um exemplo. O outro é que nós estamos a
formar Estados num contexto em que nós temos que respeitar direitos humanos.
Não estou a dizer que os direitos humanos não sejam importantes, mas o que
estou a dizer é que, tendo que respeitar todas estas coisas que os europeus não
tiveram que observar na altura que estavam a formar os seus Estados. Portanto,
é um contexto completamente diferente e é natural que a gente tenha problemas.
O modelo que nós estamos a construir, por
aquilo que está a dizer, é um modelo importado, mas estamos a importar de
países que já ultrapassaram determinadas fases. Existe um outro caminho que não
seja esse?
Não sei. É capaz de existir, porque a história
é um processo aberto. O que significa que qualquer momento de construção de um
Estado é um momento novo. Porque os factores circundantes, os factores que
envolvem esse processo estão sempre a mudar. É por isso que nós, em Moçambique,
Angola e Cabo Verde, ficamos independentes, mais ou menos na mesma altura, e
seguimos o mesmo modelo, mas há grandes diferenças entre nós. Há certos padrões
que são idênticos, similares, mas esses factores todos, a proximidade com a
África do Sul, o tipo de políticos que nós tivemos aqui em Moçambique, o tipo
de povo que nós temos, tudo isso faz com que o processo, apesar de seguir algo
que nós definimos como sendo o mesmo modelo, acaba sendo diferente.
Uma das coisas que sempre defendeu é que
considerou uma possibilidade de guerra irreal. Defendeu que poderia haver
distúrbios, mas a guerra não. Mas a ameaça em si de guerra já é em si a guerra,
na medida em que tem efeitos psicológicos, tem efeitos ao nível da economia, da
circulação das pessoas e das expectativas das pessoas…
Aí estamos a entrar numa questão semântica e é
um pouco complicado, porque é uma questão de sensibilidade política. Por
exemplo, há pessoas que têm interesse em descrever a situação em que estamos
como uma situação de guerra. É um interesse político, mas também pode ser ético
para chamar atenção das pessoas para a gravidade da situação. Eu não diria que
nós estamos em guerra, e também não acho que venha haver guerra em Moçambique,
mas pode haver uma certa instabilidade. Pode haver uma situação tensa
militarmente durante muito tempo, porque simplesmente nós vivemos num Estado
que não é suficientemente sólido para suster esse tipo de golpes.
Uma vez escreveu que a “Renamo se nutriu de
problemas reais criados pelo totalitarismo da Frelimo, nos anos a seguir à
independência”. E diz ainda que a Frelimo não é o que muitos de nós em
Moçambique pensamos que é. O nosso país vive uma situação de instabilidade, de
alguma forma influenciada pela Frelimo e pela Renamo. O que é a Renamo, o que é
a Frelimo, do ponto de vista sociológico?
A forma mais simples de responder é destacar
três pontos. O primeiro ponto, eu acho que em certa medida, a Frelimo e a
Renamo têm a mesma cultura política. É uma cultura que eu ia descrever como
messiânica. Um pouco a ideia do salvador que vem e vai criar o Reino de Deus
para os próximos mil anos. Há um pouco dessa atitude, o que cria um pouco de
problemas na cultura política que temos aqui em Moçambique. A atitude é esta:
eu vim libertar o povo e o facto de eu ter liberto o povo confere-me a
prerrogativa de dizer como é que as coisas devem ser e as pessoas têm que ficar
gratas. Qualquer crítica que as pessoas façam àquilo que eu quero fazer, é
sinal de ingratidão. Eu trouxe a democracia, então toda a gente tem que estar
grata, e qualquer crítica que se faça a mim é sinal de ingratidão. Isso é uma
cultura política extremamente problemática que compromete a participação
política das pessoas, afunila muito o campo político e faz do exercício do poder
um jogo de soma zero. Ou eu tenho poder, ou eu não tenho poder e não há nada no
meio, e como não há nada no meio não há nenhuma possibilidade de articulação
com os outros. Nós podemos fazer mais distinções dentro disso em relação a
Frelimo e a Renamo, podemos, por exemplo, fazer referência ao facto de que,
apesar de tudo, a Frelimo teve um projecto político mais elaborado, muito mais
claro, e com muito mais sentido, do que foi com a Renamo. Portanto, apesar de
tudo nós temos que reconhecer isso. E uma parte dos problemas que a Renamo tem
deriva do facto de que, ao contrário da Frelimo, o seu projecto político de
viver, de se alimentar da mesma cultura política, nunca esteve claro. A
democracia não é um projecto político. E nós vemos os problemas que eles têm.
Quando eu dizia que a Renamo alimentou-se dos problemas da Frelimo, podia ter
sido o contrário. Se a Renamo tivesse feito a independência de Moçambique, uma
vez que tem a mesma cultura política, teria fechado o campo político, teria
fechado tudo e teria criado espaço para que houvesse um campo de contestação
que levasse, como foi no nosso caso, ao exacerbar do conflito, mesmo tendo em
conta o facto de que houve o factor sul-africano, o factor do Apartheid, a
desestabilização, etc, mas o facto, também, é que não havia muita liberdade
aqui no país. Nós estávamos a viver um sistema que não permitia alternativas.
E é esta falta de cultura política que acaba
de descrever que influencia a falta de resultados no diálogo político que nós
temos hoje?
Bom, eu acho que influencia. Porque em grande
medida o que está a ser negociado lá é justamente esta prerrogativa de poder. É
verdade que algumas das reivindicações que são feitas pela Renamo fazem
sentido, uma vez que o nosso, e qualquer sistema político podia ser melhor. Por
exemplo as irregularidades nos pleitos eleitorais, a partidarização do Estado,
o facto de haver mais privilégios para quem está no poder em relação a quem
está fora são problemas que têm de ser abordados. Então eu acho que em certa
medida está-se a negociar de facto o poder, e ao mesmo tempo essa negociação
está a ser feita sob o pano de fundo de questões que são reais. Quero
aproveitar a oportunidade para dizer que acho que seria importante abrir o
diálogo para todos os moçambicanos. O novo governo tem a prerrogativa de dizer
“vamos tentar um outro caminho”. E para mim, esse outro caminho não passa por
continuarem fechados no Centro de Conferências Joaquim Chissano, mas por abrir
este debate ao MDM, à sociedade civil, e a todos outros actores sociais.
Precisa-se criar uma conferência nacional para se pensar neste país de novo.
Há cerca de quatro anos que o Governo e Renamo
decidiram sentar para dialogar, mas vemos que não há entendimento e não se
consegue desbloquear os impasses. Defendeu a necessidade de envolvimento de
toda a comunidade moçambicana, no sentido de discutir a agenda nacional. Mas a
questão de fundo é como é que se constrói esse caminho?
O Governo, por exemplo, deve mostrar onde é
que as coisas estão a imperar. Se é que, por exemplo, as coisas estão a imperar
por causa da intransigência da Renamo, cabe ao Governo informar a sociedade.
Por sua vez, a Renamo ganha com a abertura do debate porque ela pode mostrar a
alegada falta de vontade do Governo. Penso que não precisamos de grande
reflexão para encontrar o caminho para a abertura do diálogo. É simplesmente
uma questão do Presidente da República ou o partido que está no poder dizer que
nós já tentamos tudo, já fizemos tantas rondas negociais, tentamos o
desarmamento e nada resultou, mas este país tem que continuar. Nós fizemos
muito nestes últimos 40 anos e não vamos querer perder tudo que construímos.
Dai tomarem a decisão de convidar todos os representantes dos moçambicanos, em
jeito de partidos políticos e de sociedade civil, e as confissões religiosas.
Mas o actual Presidente logo que chegou ao
poder reuniu-se com o líder da Renamo, do MDM, com as várias igrejas e chegou
até a fazer uma conferência para discutir a paz e a violência. Não será um
sinal de um caminho que este Presidente está a tentar mostrar no sentido de
reconciliar a família moçambicana?
Sim, eu acho que ele tem feito muito nesse
sentido. É verdade que algumas pessoas fazem troça dele, dizendo que ele ainda
não é Chefe de Estado, mas ele tem feito várias coisas como as que mencionou.
Mas essas são coisas pontuais. E eu estou a referir-me a uma acção muito mais
formal. Ainda que tenha que chegar ao ponto de dizer “eu declaro as rondas
negociais com a Renamo encerradas completamente, e nós vamos fazer outra coisa.
Vamos nos sentar todos no Centro de Conferências Joaquim Chissano e vamos falar
como vamos gerir este problema. Vamos falar dos pleitos eleitorais, da
organização territorial”. Ainda que isso tenha que passar por uma reforma da
Constituição, de modo a criar esse espaço de diálogo. Na verdade, o problema
agora é que as negociações têm como fim acomodar a Renamo e a Frelimo. E o
problema que nós temos agora não é a acomodação, e sim encontrar uma maneira de
vivermos todos juntos.
No primeiro painel do MOZEFO discutiu-se a
questão da humanização do crescimento. Na ocasião defendia-se a necessidade de
um pacto social sobre os principais temas do país, e a criação de instituições
que fossem capazes de conservar a memória institucional e conduzir a um
processo de desenvolvimento. Qual é a sua opinião em relação a estes dois
pontos?
Eu não sou muito amigo desse tipo de
terminologia “pacto social”, “instituições fortes” e posso explicar porquê. Em
vários pontos do país onde as pessoas vivem em comunidade não fizeram nenhum
pacto social, e vivem bem umas com as outras, e resolvem os problemas quando se
desentendem. Tudo o que um país precisa para viver bem é de uma Constituição
que é respeitada. Portanto, para mim o melhor pacto social é a Constituição. É
ela que estabelece as regras de jogo, e é isso que nós precisamos. Quando as
regras de jogo não são respeitadas entra a ética e a moral. Também não sou
muito amigo da agenda 2025, tanto que na altura que foi feita critiquei.
Mas então como é que identificamos os nossos
objectivos a curto, médio, e longo prazo?
Não temos objectivos em comum. O problema está
aí de pensar que nós temos objectivos em comum. Nós somos um acidente histórico
e geográfico. Encontramo-nos por acaso e temos que partilhar este espaço, e não
precisamos de ter um objectivo comum. O único objectivo comum que nós
precisamos de ter é de não resolver os nossos problemas indo a garganta um, do
outro e criar espaço para que cada um de nós defina o seu objectivo e o
alcance.
Mas a falta dessa visão comum sobre os
objectivos que nós queremos não é essa razão que despoleta os desentendimentos?
Não, não é. É o egoísmo, a prerrogativa do
poder que algumas pessoas têm, e a ganância. É toda uma série de coisas menos a
falta de objectivos comuns. A ideia do objectivo comum para mim só faz sentido
quando ela é entendida como regras do jogo. E é a Constituição que faz isso. Eu
tenho ouvido muita gente a falar disso, mas para mim esse é um pensamento
extremamente nocivo para a vida em democracia. Cada um de nós tem as suas
aspirações. Até pode aparecer um partido político dizendo que devemos apostar
nos objectivos comuns. Mas não pode dizer que só assim o país será viável.
Eu não acho que a pré-condição para o
bem-estar, e seja lá o que isso for, seja a existência de instituições fortes.
As instituições fortes são muitas vezes o resultado do desenvolvimento. Aquilo
que a gente vê nos Estados mais avançados, é justamente isso. Eles não criaram
instituições fortes e depois desenvolveram-se. As instituições ao longo do
tempo, por si só ficam mais sólidas. Mas há uma grande guerra que a gente tem
que fazer todos os dias para que essas instituições fiquem cada vez mais
fortes. Mas nós temos muito essa mania de usar palavras que pensam por nós.
Então nós não interpelamos o significado dessas palavras e depois temos dificuldades
em perceber o que está a correr mal no nosso país, porque há muitas palavras
que nos descrevem um mundo fácil de alcançar. Mas essas coisas não são fáceis
de alcançar.
Os objectivos de desenvolvimento do milénio
foram substituídos pelos objectivos de desenvolvimento sustentável. Como é que
vê o projecto desta nova agenda global, embora já seja possível prever o que
vai dizer tendo em conta que o que disse anteriormente?
Eu na altura critiquei muito esses objectivos
do milénio. É perca de tempo aquilo. Até chega a ser uma brincadeira de mau
gosto. Não quero de forma alguma pôr em causa a necessidade de não termos
pobreza, e as pessoas serem saudáveis. Mas essas não são coisas que podem ser
feitas com intervenção técnica. Reduzir a pobreza é um problema político. Dar a
saúde às pessoas é um desafio político. A minha crítica incidiu-se mais na
ideia de que alguém em Nova Iorque podia tomar essa decisão e depois dizer
vocês agora têm essa tarefa de fazer isso aí e nós vamos mandar dinheiro. Como se
eles tivessem feito as coisas dessa maneira nos seus próprios países. Eles têm
consciência de que eles próprios levaram muitos anos, travaram muitas lutas
para atingir esse patamar. E tudo isso deveu-se a intervenções políticas e não
técnicas.
O professor Severino Ngoenha defende que é
preciso reforçar o sentido de pertença. Aliás, esse foi um tema muito levantado
aqui no MOZEFO. E é recorrente este discurso de autoestima, de dizer que os
moçambicanos durante o início dos anos da independência tinham este sentido de
pátria, mas hoje já não existe. Afinal de contas, o que quer dizer sentido de
pertença?
Eu acho que ele tem razão. Nós precisamos sim
de sentido de pertença, porque isso é muito importante. Lembro que no primeiro
dia do MOZEFO falou-se que havia um maior sentido de pátria, mas eu não
concordo com isso. Houve um projecto político que tinha uma ideia muito clara
do que é a pátria moçambicana, e essa ideia do que é a pátria moçambicana
criou-nos muitos problemas porque era muito excludente. É preciso ter em conta
que o processo de construção do país tem vários níveis. Há um nível que é o do
Estado, e há um nível que é da sociedade. Então, o Estado é a prerrogativa que
alguém tem de monopolizar os meios de violência. Refiro-me à violência de dizer
“eu estou a dar ordens para você dizer isso aí”. Olhando para a história do
processo de construção de Estado na Europa, notamos que a construção foi,
primeiro, por monopólio, através da implementação dos meios de violência. E
este monopólio não implicava a aceitação dessa prerrogativa por parte da
sociedade. Era um projecto de força contra a sociedade, mas a longo prazo foi
necessário que essa prerrogativa fosse legitimada pela sociedade. E é por isso
que entra todo esse processo democrático que vai permitir que o uso da
violência pelo Estado seja aceite pela sociedade. Então, esse é que é o
problema que nós tivemos em 1975. Tivemos um projecto político que era na
verdade um Estado que queria formar um Estado-Nação, mas formá-lo é preciso
esse elo de legitimação. E esse elo de legitimação sempre foi muito fraco. Na
altura, parecia ser mais forte simplesmente porque nós estávamos na euforia da
independência. Mas não é porque havia legitimidade para o projecto ideológico
da Frelimo naquela altura.
Uma das ideias que defende é que a ausência da
alternância política não é necessariamente uma coisa má. E que haja coerência
no agir político, e na força da sociedade. Disse também que a dominação de um
partido não tem de ser uma coisa necessariamente má. O que quer dizer com isso?
Eu acho que o país precisa de um ambiente mais
democrático do que é agora. Naturalmente, que em qualquer manifestação política
há sempre vícios. Por exemplo, o facto de termos um partido que está há muito
tempo no poder cria os seus vícios. Mas o problema não é nós termos partido
político a ganhar sempre as eleições. O problema é toda a cultura política que
nós temos. Nós podemos alterar os governos e continuarmos com a mesma situação
que algumas pessoas criticam.
A Renamo levantou a questão da regionalização,
centralização, ou seja, da necessidade de termos o poder mais próximo das
pessoas. No seu ponto de vista como reforçar a legitimidade do poder público
junto dos governados num país tão extenso, pobre e sem estruturas de base como
o nosso?
A pobreza não é o problema. Muitas vezes a
forma como a gente coloca as coisas sugere um problema falso. Aquando da
introdução das autarquias eu defendi a ideia de que era preciso arriscarmos
mais democracia. E não fazer esse gradualismo que durante muito tempo foi visto
como a melhor forma de proceder. E eu dizia que nós tínhamos que ter a coragem
de devolver o poder ao nível mais local. É justamente porque o país é grande
que o poder precisa ser devolvido às instituições locais. Também não percebo a
lógica de termos governadores provinciais indicados pelo Presidente. Eu acho
que o governador provincial devia ser indicado pela assembleia provincial. Se é
que existe a necessidade de eles existirem. Eu sei que um dos argumentos é a
questão da representatividade do Chefe de Estado. Mas para mim esse argumento
não é válido, porque toda a instituição do Estado representa o Chefe de Estado.
E o Chefe de Estado é representante do povo, então onde está o povo que o Chefe
de Estado está representado. E o contrario também. O segundo ponto é que nós
temos uma organização política das regiões em Moçambique que é extremamente
problemática, sobretudo no que diz respeito à relação entre o governador e as
assembleias provinciais. O último e terceiro ponto que gostava de avançar é que
houve nos últimos tempos essa coisa da Renamo querer não só criar províncias
autónomas como também inclusivamente dividir o país. Penso que nós precisamos
de alguma legislação que conte com essa possibilidade e permita as pessoas movimentarem-se
no sentido de se separar, se o quiserem fazer. Porque como eu disse, nós somos
um acidente histórico e geográfico, então não há nenhuma lei da natureza que
diz que Moçambique está condenado a ser sempre Moçambique do Rovuma ao Maputo.
Mas essa ideia de separação, de dividir, de
regionalização, sobretudo a nível do poder instalado, não é recebida de bom
grado. Se a legislação criar espaço para essa desagregação não se corre o risco
de ferir um projecto político que existe em Moçambique?
Sim, corre-se esse risco. E eu fico contente
que o governo se sinta incomodado com essa possibilidade. Porque mostra também
o compromisso que ele tem com o país como um todo. E não há nada demais nisso.
O que eu estou a dizer é que em política real temos que contar com esse tipo de
coisas. Nós precisamos de mecanismos que nos possa permitir decidir sobre essa
questão. Aparecer alguém a dizer que eu já estou farto de ver a minha província
como parte de Moçambique, eu quero sair daqui. Essas são as tais regras de jogo
que estou a falar. Não precisamos de um pacto social para manter alguém numa
situação que não lhe agrada. Então nós temos que contar com isso. O que podemos
fazer é ter prudência, pois apesar de tudo um país é uma coisa séria. Temos de
garantir que esses mecanismos de separação sejam os mais difíceis possíveis.
Não acha que existe o receio da
descentralização acabar com as zonas de influência política?
Pode ser que haja isso, e para mim é natural
devido à própria estrutura do país. Ter o poder do Estado é uma prerrogativa
muito grande. O multipartidarismo trouxe certas vantagens. De modo que é
natural que aquelas pessoas que já detêm o poder do Estado tenham receio de
perder esse poder, ao se descentralizar. Mas eu acho que o problema está na
própria concepção política que nós temos de achar que o Estado existe para
fazer as coisas para as pessoas.
Mas não deve ser essa a concepção, o Estado
não está para servir as pessoas?
Não é que não deve ser. É minha opinião e é
uma opinião política. Eu acho que a melhor concepção do Estado que nós podemos
ter é aquela que limita as prerrogativas do Estado apenas ao estabelecimento da
ordem, a criação, naturalmente, das infra-estruturas, mas que se envolva o
menos possível na vida das pessoas. Quando uma pessoa tem a concepção de que o
Estado tem que fazer tudo, e uma outra aparece a dizer que tem que
descentralizar, essa pessoa vai sentir-se castrada naturalmente.
Apontou uma vez que a sua maior esperança é a
competência, a qualidade do debate. Disse que isso lhe preocupa muito. Aliás,
suspendeu as suas análises, os comentários que fazia no seu blog, alegando ter
sido mal interpretado. Que reflexos esta falta de qualidade da nossa discussão,
a falta de qualidade que muitas vezes tem levantado do nosso ensino é o factor
crítico para o desenvolvimento do nosso país?
Quando suspendi o blog era mais por falta de
tempo, não foi porque tivesse sido mal-entendido. É verdade que senti que havia
alguns problemas na forma como discutíamos e que muitas vezes as discussões que
nós fazíamos tinham pouco com o mérito das questões e muito mais com a
protecção das convicções das pessoas. Eu acho que a competência nos debates é o
que faz um país. Um país onde a qualidade do debate, onde a interpelação
crítica é forte, é um país que tem grandes possibilidades de fazer muita coisa.
Infelizmente o nosso país está a ficar cada vez mais polarizado, mesmo ao nível
do debate intelectual. Quando eu digo polarizado quero dizer que o que conta
não são os méritos das questões, mas o que conta é sempre a protecção das
minhas crenças e políticas ideológicas. Eu acho isso muito triste e
desanimador, muito problemático, e o debate intelectual, pelo menos aquele
debate que eu sigo, sobretudo nos meios sociais, nos facebook é um debate muito
ideológico, é um debate que não é objectivo, é um debate que não convida a
debate. É sempre um arremessar de acusações, de especulações e isso não é bom
para o país, não é bom para a intelectualidade. Isso permite-me dizer uma
coisa, porque há muita gente a dizer que precisamos de educação, ensino
superior para desenvolvermos, que é outro problema de reflexão que nós temos.
As pessoas falam de estatísticas que mostras os países que desenvolveram, que
investiram muito na educação. O outro problema é que o investimento na
educação, na investigação, no ensino, também é resultado do desenvolvimento,
não é o contrário. As estatísticas mostram isso para vários países. Há essa
ideia de que, por exemplo, aqui em Moçambique precisamos formar as pessoas, mas
quando eu vejo as pessoas que estão formadas hoje, a forma como elas discutem
os assuntos, eu digo para quê que nós precisamos daquele tipo de formação, se é
aquele tipo de pessoas que produzimos, que nos debates não vai a fundo nas
questões. O que faz sentido é aquilo que confirma a minha opinião política de
que há alguma coisa… nós podemos chegar a uma situação em seremos todos
doutores. Parece que para algumas pessoas, se nós chegarmos nessa situação o
país será desenvolvido. As pessoas esquecem que se todos nós formos doutores,
nós vamos criar novos graus para haver de novo essa diferenciação. O que nós
precisamos no país, não é exactamente de mais pessoas na universidade. O que
precisamos é de pessoas bem formadas nos níveis inferiores de ensino no país. No
ensino primário e no ensino secundário, gente que sabe ler, gente que sabe
escrever e gente que sabe fazer contas, é isso que gente precisa, e o resto
há-de vir. Se um indivíduo tem essas qualificações, pode aprender tudo, mas se
não tem essas qualificações, não importa se é doutor, vai continuar ignorante.
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