quinta-feira, março 18, 2021

O relatório não é grande coisa

Crimes de guerra no “Cabo Esquecido” de Moçambique é o título do mais recente relatório da Amnistia Internacional sobre alegadas violações de direitos humanos em Cabo Delgado. Estas violações são, segundo o relatório, da responsabilidade dos “insurgentes”, das Forças de Defesa e Segurança e dos mercenários contractados pelo governo de Moz. A violência que é descrita neste relatório é arrepiante. Ao lado da violência sádica dos “insurgentes” que consiste essencialmente em decapitações e esquartejamentos, há a violência arbitrária das FDS que consiste, ainda segundo o relatório, no não cumprimento do dever de protecção de civis, na execução sumária de suspeitos, na extorsão e pilhagem de bens de civis e ainda a violência dos mercenários que nas suas operações aéreas não distinguem entre civis e combatentes lançando granadas e atirando para multidões de forma indiscriminada.

É tudo arrepiante. Agora, como resultado dum estudo o relatório não é grande coisa. É verdade que recorre à análise de várias fontes de informação com destaque para depoimentos (obtidos por telefone ou vídeo conferência) dum número muito reduzido de informantes (57 pessoas). O maior problema para mim, e que afecta a qualidade do relatório, é o seu enquadramento. Os autores partem duma narrativa enviesada que aceita como certo aquilo que precisaria de ser estabelecido na própria pesquisa e análise. Assim, eles partem do princípio de que a violência constitui uma reacção de locais à marginalização pelo estado e chegam a dar a impressão de romantização dos “insurgentes” que, alegadamente, reagem à violação por parte dos governos moçambicanos dos seus direitos humanos, nomeadamente o direito de viverem uma vida condigna. Isto é muito discutível e passa por cima das reais dificuldades de países como o nosso de lidarem com o desafio de construção da nação.

Corresponde, contudo, a uma maneira bastante problemática de abordagem do problema de Cabo Delgado em trabalhos de cunho académico e que consiste em sempre procurar confirmação para algum palpite que se tem sobre a sua origem. Se alguém acredita que temos esse conflito por razões religiosas, então vai procurar coisas que “provam” isso. Se acredita que existe lá descontentamento em relação ao governo, toca daí a procurar coisas que “provam” isso. São abordagens bastante insatisfatórias a meu ver porque de análise social pouco, ou quase nada têm. Depois de ler com interesse e assiduidade o que se publicava ou falava em Webinars, perdi interesse (mas continuo a acompanhar).

Só que seria ridículo negar que o que é relatado no relatório não corresponda a uma boa porção da verdade. Muitos vão ficar atónitos perante os níveis de violência. Poucos, contudo, vão procurar relacionar esta violência de que somos capazes com a nossa cultura política de base. Esta cultura tem os seus alicerces numa profunda convicção segundo a qual os fins justificariam os meios. No período colonial o que alimentava esta convicção era a ideia de que um povo com uma civilização superior estava a cumprir o seu dever de trazer povos atrasados à civilização. Alguns moçambicanos lutaram contra o regime colonial para acabar com isso. Quando ganharam, ao invés de ver nisso a oportunidade de criar uma nação dentro da qual as pessoas podiam ver a sua dignidade respeitada, tornaram essa dignidade refém de ideias desvairadas sobre a história da humanidade.

As bases para que o Estado pós-colonial moçambicano não tivesse nenhum respeito pelos seus cidadãos foram estabelecidas com o projecto político particularista dos “revolucionários”. No discurso era tudo bonito, na prática, contudo, era o que todos sabemos, sobretudo com o discurso enviesado de que a satisfação de necessidades materiais é mais importante do que a liberdade (um bem burguês ou capitalista). Vem desse tempo a difícil relação entre membros das FDS e população, bem documentada na forma como a guerra contra a Renamo foi feita e que deixou memórias horríveis nas pessoas (fiz pesquisas sobre a brutalidade da guerra e tenho horas e horas de registos de pessoas que passaram por ela), mas também, e dum modo geral, a re-introdução do castigo corporal e dos fuzilamentos em público que banalizaram totalmente a vida humana e, sobretudo, a vida do moçambicano. E muitas vezes, esse moçambicano não é quem vive no conforto da cidade e leva uma vida afluente. São as pessoas mais indefesas convenientemente usadas como a referência daqueles que querem fazer o bem de todos. A Renamo cometeu atrocidades horríveis e que na sua extensão não se comparam com o que o Estado moçambicano, através dos seus agentes, fez. Mas a lógica foi a mesma: os fins justificam os meios.

Os crimes de guerra em Cabo Delgado são chocantes, mas fazem parte da nossa maneira de estar no mundo. Essa é a triste verdade. A posição mais cômoda que muitos vão escolher, incluindo o governo, vai ser de negar que isto seja verdade ou de externalizar a coisa. Mas aquilo que torna uma comunidade normativamente robusta, isto é a valorização da dignidade através dum compromisso com a sua inalienabilidade não será feito por ninguém. E uma das razões para não se fazer isso é porque aqueles que podiam liderar o processo estão com o rabo preso por causa da sua própria defesa do indefensável no seu próprio percurso.

Querem um País onde se respeitam direitos humanos, mas não querem fazer aquilo que adultos fazem, nomeadamente confrontar os seus próprios fantasmas. Preferem segurar-se à ideia de que há gente (eles) mais perfeita do que outra (os outros), esquecendo que a imperfeição faz parte da nossa humanidade. A única diferença é que existem pessoas que gostariam de ser menos imperfeitas e sabem que isso se faz reconhecendo erros.

Africanamente falando, o País está a pagar pelas atrocidades cometidas pelos seus melhores filhos. Quem nos atormenta são as pessoas inocentes sacrificadas no altar daqueles que confundiram a independência com a instauração dum regime particularista. Enquanto não fizermos a “mhamba” que nos liberte dessa nódoa, continuaremos a nos chacinar desta forma, sem dó, nem piedade como, aliás, em nome da revolução, o fizemos.

A escolha é nossa.

(por Elísio Macamo in facebook)

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