São 10 horas
da manhã de uma quinta-feira. Os oito balcões de check-in do Aeroporto
Internacional de Nacala, norte de Moçambique, estão fechados. Todas as cadeiras
vermelhas e pretas das salas de embarque estão vazias. Espaços destinados para
lanchonetes, lojas, free shop estão desocupados. Seis guichês de migração não
têm uso. Esteiras e raio-X de bagagem estão parados. O ar condicionado está
desligado, apesar do calor de mais de 35ºC. O elevador também. O toque dos
sapatos no chão faz eco.
Tudo está
muito limpo, como se fosse uma infraestrutura prestes a debutar. Mas essa cena
já dura três anos. Inaugurado em dezembro de 2014, o espaço foi projetado e
construído pela Odebrecht, com um empréstimo de US$ 125 milhões (R$ 404 milhões
na cotação atual) do BNDES, para ser o segundo maior de Moçambique - só fica
atrás do de Maputo, a capital. No entanto, continua a amargar a posição de
aeroporto menos movimentado do país - e um dos menos usados em toda a África.
Com capacidade
para 500 mil passageiros por ano, recebe menos de 20 mil. Os voos
internacionais nunca chegaram. São apenas dois trajetos comerciais por semana,
na rota Maputo-Nacala, e dois privados da mineradora brasileira Vale, ambos
operados com aviões brasileiros da Embraer. Para comparação, há um aeroporto
próximo, a 190 km, em Nampula, com 57 voos semanais.
"Hoje é
um dia morto", diz o diretor do aeroporto, Jeronimo Tambajane. "Eu
esperava que essa área estivesse completamente movimentada, com vários voos a
ocorrerem. Infelizmente, nesse momento não temos nada." Ao caminhar pela
sala de embarque internacional, o moçambicano passa a mão pelo couro vermelho
de um divã: "Já seria altura de remodelar (reformar)".O fracasso do
empreendimento pesa nos bolsos dos dois países. Desde o final de 2016,
Moçambique não paga as parcelas do empréstimo do BNDES, o branco brasileiro de
fomento à economia brasileira, diluído em um prazo de 15 anos. É o primeiro
calote que a instituição tomou entre todas as obras custeadas fora do Brasil -
operações que passaram a ser postas em xeque após a operação Lava Jato.O pagamento do
empréstimo não é a única conta que não fecha. O Aeroporto de Nacala opera no
vermelho desde que foi inaugurado. Só o seu custo de operação é quatro vezes
maior que as receitas. O saldo negativo recai sobre os outros aeroportos de
Moçambique, geridos todos pela mesma empresa estatal.Não bastassem
a falta de voos, de passageiros e as contas em atraso, há suspeitas de
corrupção em torno do aeroporto. Tanto Odebrecht como Embraer relataram ao
Departamento de Justiça dos Estados Unidos terem pagado propina para
autoridades moçambicanas com o objetivo de fechar negócios.
A construção
do aeroporto foi sugerida ao governo moçambicano pela Odebrecht. Não se baseou
em uma demanda reprimida de passageiros em Nacala, uma região com 375 mil
habitantes, mas sim em uma suposta esperança de crescimento futuro, puxado por
empresas brasileiras.
É por Nacala,
uma cidade portuária, que a Vale exporta a maior parte do carvão que extrai nas
minas de Moatize, também em Moçambique, uma das maiores reservas do minério do
mundo. Esse é o maior investimento do Brasil na África, assinado durante o
governo Lula e estimado em US$ 8,2 bilhões de dólares.
A expectativa
era de que a exportação de carvão por ali atraísse outros negócios. No caminho
entre Moatize e Nacala, por exemplo, o braço de cooperação internacional do
Itamaraty e a FGV Agro (vinculada à Fundação Getúlio Vargas) esperavam
estimular a expansão agrícola - do agronegócio brasileiro, inclusive.Mas, por
enquanto, as previsões se frustraram. Quando as obras do porto da Vale e do
aeroporto da Odebrecht acabaram, o desenvolvimento estancou. "Na fase de
construção, houve muito movimento. Depois, a empresa só traz carvão, embarca e
vai embora", explica José Ferreira, economista da Agência para a Promoção
de Investimento e Exportações de Nacala.
Além disso, as
economias brasileira e moçambicana entraram em crise. "Infelizmente,
depois que o Aeroporto de Nacala foi inaugurado, houve esse esfriamento
econômico, criou este buraco. Mas tenho fé de que Nacala vai cumprir seu papel.
Não acredito que o aeroporto possa fechar um dia porque não vem avião",
afirma o diretor Tambajane.
Hoje, somam-se
placas de vende-se em Nacala. Postos de trabalho fecharam."Estou a
procurar serviço, qualquer serviço, mas não há mais empregos", diz
Vitorino Mario, de 25 anos. Ele trabalhou por dois anos para a empreiteira
brasileira OAS, que construiu o porto de carvão da Vale. Está desempregado há
três anos, desde que as obras acabaram, fazendo bicos para sustentar os três
filhos.
O quintal da
casa onde vive, perto do porto, está ocupado por uma pequena carpintaria de
outros ex-operários da OAS. Depois de trabalharem para a empresa, "a vida
voltou a ser como era antes", diz Bachir Severino. O sonho de
desenvolvimento brasileiro em Nacala durou pouco.
Moçambique é
um dos países mais pobres do mundo - 46% da população vive na pobreza, segundo
estatísticas do país.
Nacala não
foge à regra. Metade da cidade não tem água encanada, por exemplo. Nas margens
da estrada que leva ao aeroporto, é possível ver diversas fontanárias - poços
acionados por pressão manual - cercadas de mulheres e crianças com baldes nas
mãos e nas cabeças.
O bairro
Matchapue ilustra a precariedade de infraestruturas básicas de Nacala.
Contam-se nos dedos as casas com água na torneira. A de Fátima, com dois
cômodos, é uma delas. A moçambicana fez da raridade um negócio: construiu um
reservatório no quintal, que abastece com uma mangueira. A partir das 5h, os
vizinhos chegam para encher seus baldes, ao custo de 5 meticais (R$ 25
centavos) cada.Anchia Enusso,
de 21 anos, é uma das clientes, enchendo apenas um balde. "Só? Vai dar
para quê?", perguntou a vendedora. "Hoje só tenho 5 meticais",
respondeu a jovem, com a filha no colo. Nem ela nem a mãe trabalham fora. O pai
é pedreiro. Tudo precisa melhorar no bairro onde vivem, mas o que mais faz
falta é emprego, dizem elas.Outros
vizinhos se aproximam para reclamar de que também querem emprego. Juma Siaga,
pescador de 48 anos, é um deles. Diz que a renda da pesca é muito baixa. O
nicuzi, um peixinho de uns 5 centímetros, por exemplo, é vendido seco em
pequenas porções de 5 meticais - o mesmo preço do balde de água.Siaga esteve
uma vez no Aeroporto de Nacala. Era a festa de inauguração, aberta ao público.
Ficou encantado. "É grande, muito bonito, com muito vidro. A festa foi
boa, havia música, dança, muita gente." Foi o dia de maior movimento na
história do terminal. Cerca de 500 pessoas apareceram para festejar.
O terminal de
Nacala é o primeiro aeroporto construído em Moçambique desde a independência de
Portugal, em 1975.
É o mais
moderno do país e o único que já obteve uma certificação para operar voos
internacionais. No total, há em Moçambique onze aeroportos, seis deles
internacionais. Os demais ainda estão em processo para obter a certificação.
O segundo
aeroporto mais movimentado do país é justamente o de Nampula, vizinho dali.
Como há poucos voos para Nacala, há quem voe para Nampula e depois faça o
restante do percurso de carro.
"É muito
constrangedor ter que fazer duas horas de táxi de Nampula a Nacala, sendo que
há esse aeroporto aqui", diz a moçambicana Katia Manjate, que voou de
Maputo para Nampula em outubro, para dar uma formação para rádios comunitárias
em Nacala.
O taxista
Carlos José está acostumado a fazer esse trajeto. "Esse aeroporto de
Nacala é muito grande mesmo, bem trabalhado. Só falta aviões. Fala-se de falta
de passageiros. Assim, a LAM (Linhas Aéreas de Moçambique) não consegue
suportar as despesas de levar avião para Nacala sem passageiros."A LAM, única
empresa de aviação de Moçambique, estatal, chegou a realizar cinco voos
semanais na rota Maputo-Nacala. Depois, reduziu a frequência para quatro voos,
em seguida três, até chegar aos dois voos atuais."As
companhias aéreas sempre se baseiam nas estatísticas. E nós sempre estamos em
desvantagem. Elas vão procurar onde há movimento. Vão ver que é em Nampula.
Dificilmente virão para Nacala. Então, nosso tráfego vai continuar a ser gerido
pela LAM. Como companhia do Estado, a LAM não pode abandonar nenhuma escala,
tem que cumprir seu dever social", afirma o diretor do aeroporto.No momento, a
única esperança do Aeroporto de Nacala é que o governo de Moçambique proíba o
tráfego internacional nos dois aeroportos mais próximos (Nampula e Pemba) e
obrigue as empresas aéreas a alterarem as rotas.
A medida
enfrentaria resistência das companhias, dos passageiros e também de empresários
- Pemba é a nova promessa de desenvolvimento de Moçambique, devido à descoberta
de enormes reservas de gás natural.
A Odebrecht
revelou para o Departamento de Justiça dos Estados Unidos que realizou
"pagamentos corruptos" no valor de US$ 900 mil para autoridades
moçambicanas, entre 2011 e 2014, período de construção do aeroporto.
Parte desse
valor teria sido paga para obter "termos favoráveis em um projeto de
construção do governo, que o governo não estava inclinado a aceitar".O caso foi
transferido para a Procuradoria da República de Moçambique. Procurado pela BBC
Brasil por três semanas, o órgão se negou a comentar o caso. Até hoje, não
revelou quem são os moçambicanos envolvidos na denúncia da Odebrecht. A empresa
responsável pelos aeroportos do país africano também não respondeu a BBC
Brasil.
O Aeroporto de
Nacala também apareceu na operação Lava Jato. Um dos delatores da Odebrecht,
Antonio de Castro Almeida, afirmou que uma funcionária da Câmara de Comércio
Exterior da Presidência da República (Camex) teria recebido 0,1% do valor do
contrato para agilizar a aprovação do projeto no órgão - uma das etapas
necessárias para liberar o financiamento no BNDES.
A empreiteira
informou, por nota, que está colaborando com as investigações brasileiras e
estrangeiras: "A qualidade e a eficácia da colaboração da Odebrecht vêm
sendo confirmadas dia a dia, e têm sido instrumento valioso para a ação da
Justiça brasileira dos países em que a empresa atua. A empresa está
comprometida em combater e não tolerar mais qualquer forma de corrupção, e
também está decidida a atuar sempre com ética, integridade e
transparência".
Desde o
princípio da negociação do empréstimo do BNDES, estava claro que Moçambique não
poderia oferecer garantias robustas."As
dificuldades seriam as garantias oferecidas por Moçambique, um país pobre que
não tinha capacidade de oferecer garantias. A gente fez uma estruturação para a
garantia de Moçambique ser aceita", afirmou Castro Almeida na delação
premiada.Mesmo assim, a
Embaixada do Brasil em Moçambique deu seu aval para o projeto. Em 2009, o então
embaixador brasileiro no país, Antonio Souza e Silva classificou a obra como
"imprescindível".
"O novo
aeroporto de Nacala será um ponto central para a região norte de Moçambique,
servindo de passagem para outros aeroportos, aumentando o fluxo de passageiros
e carga", escreveu o diplomata em telegrama para o Itamaraty, em resposta
a pedido de informações do Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações
(Cofig)."Quanto
aos riscos, Moçambique não está disposto a ingressar numa espiral de
endividamento irresponsável, conforme experiências passadas. O governo tem
pautado suas iniciativas de longo prazo com prudência e responsabilidade
técnica", continuou o embaixador.A análise se
mostrou equivocada. Moçambique vive hoje uma severa crise da dívida, após o FMI
descobrir que o país estava contraindo empréstimos ocultos, fora dos registros
oficiais - não é o caso do crédito com o BNDES. Como consequência, a comunidade
internacional congelou o repasse de recursos externos, que suportavam nada
menos que um terço do orçamento do Estado moçambicano.
O
subsecretário-geral para promoção comercial do Itamaraty, Santiago Mourão,
afirma que o Aeroporto de Nacala era visto pelo governo de Moçambique como uma
peça importante e estratégica para o desenvolvimento do país e imaginava-se que
o corredor que vai de Moatize a Nacala seria um motor econômico regional.
"As
dificuldades financeiras com que Moçambique se confrontou não estavam previstas
naquele momento. Mas percalços econômicos do país não invalidam a ideia do
projeto."O empréstimo
para o Aeroporto de Nacala só foi possível porque o Brasil perdoou dívidas
anteriores de Moçambique, no valor de US$ 315 milhões - não é possível
emprestar para quem tem nome sujo na praça brasileira.
O perdão, ocorrido
em 2004, foi o primeiro do governo Lula e um dos maiores já concedidos pelo
Brasil. A dívida havia sido assumida durante a ditadura militar, nas décadas de
1970 e 1980.
"Qual foi
o grande favor que nós fizemos? Nós liberamos as pessoas para fazerem novas
dívidas. É apenas isso. Eles não iam pagar porque não tinham dinheiro",
disse Lula, em entrevista em dezembro de 2013.O BNDES
argumenta que o empréstimo tinha por objetivo estimular a exportação de
serviços de empresas brasileiras. O dinheiro foi fornecido diretamente para a
Odebrecht. A estatal de aeroportos de Moçambique tem 15 anos para pagar de
volta.O banco
informou, por nota, que o financiamento para a construção do Aeroporto de
Nacala "seguiu o trâmite usual por que passa qualquer pedido de financiamento
ao BNDES". Acrescentou que "o governo de Moçambique continua
inadimplente com o BNDES nesses contratos e a renegociação segue em curso, sob
condução do Governo brasileiro". O BNDES acionou o Seguro de Crédito à
Exportação da União, para cobrir as parcelas não pagas.Após a eclosão
da Lava Jato, os créditos do BNDES para projetos de infraestrutura brasileiros
na África despencaram. Em 2016, somaram 1% da média anual registrada nos oito
anos anteriores - US$ 6 milhões contra US$ 446 milhões.
A pista de 3,1
quilômetros do Aeroporto de Nacala é frequentada pelos aviões Embraer 190 e
Embraer 145. São aeronaves de tamanho médio, bem menores do que a pista pode
suportar. Elas fazem sucesso na África, que não tem um mercado aéreo robusto
para aviões com muitos assentos.
Dos sete
aviões da Linhas Aéreas de Moçambique, cinco são da Embraer. A compra de parte
deles está sendo investigada.
A empresa
brasileira revelou para as justiças americana e brasileira ter pagado US$ 800
mil ilicitamente pela venda de dois modelos 190 para a LAM - justamente o que
faz a única rota comercial para Nacala - no valor de US$ 32 milhões cada, entre
2008 e 2009.Segundo a
denúncia, autoridades moçambicanas solicitaram pagamentos ilegais e receberam
uma oferta inicial de US$ 50 mil. O valor teria sido visto "como um
insulto" pelos moçambicanos, que esperavam muito mais. Esse teria sido o
recado passado por telefone pelo então presidente da LAM para um executivo da
Embraer."Poderíamos
nos safar com US$ 800 mil", teria sugerido o moçambicano. A fabricante de
aviões diz ter realizado dois pagamentos de US$ 400 mil cada para atender o
pedido.O caso também
está sendo investigado pela Procuradoria da República de Moçambique, que se
restringiu a informar que a fase do processo "não recomenda a partilha de
informação". A LAM não respondeu à BBC Brasil.Em nota, a
Embraer afirmou que reconhece a responsabilidade pelos atos de seus
funcionários e agentes e lamenta o ocorrido. "A companhia aprendeu e
evoluiu com essa experiência e dará continuidade à sua trajetória de
sucesso."
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