Num país normal devia ser normal
posicionar-se criticamente sem ter de pedir desculpas a ninguém. O nosso país,
infelizmente, não é normal. Há uma resistência à crítica que filtra o que se
diz da pior maneira possível. Se você é da Frelimo e o seu partido é criticado,
você faz da pessoa que critica o verdadeiro problema e chama-o de invejoso. Se
você não é da Frelimo e os outros são criticados, você faz da pessoa que
critica o verdadeiro problema e chama-o de lambe-botas e intelectual a soldo da
Frelimo. Cansa, mas é o país que somos.
Nos últimos tempos tenho vindo a
criticar algumas coisas na Frelimo e, em especial, na postura do seu chefe que
tem sido tudo menos feliz e inspiradora de confiança no futuro. Não há nada de
novo nessa minha postura. Mesmo o inimigo público número 1 do país, de quem me
confessei fã, nunca escapou às minhas críticas. Sempre critiquei o seu discurso
contra a pobreza; critiquei a prerrogativa que ele manteve de intervir nas
universidades públicas que, no caso da UEM, levaram à reitoria dessa
Universidade um indivíduo que foi destruir uma boa parte do que os seus
predecessores tinham construído; sempre critiquei o esbanjamento de recursos
públicos que as suas presidências abertas representaram e também critiquei a
maneira como ele se propôs resolver o problema da instabilidade
político-militar com amnistias que recompensaram o desprezo pela vida humana e
pela constituição do Estado.
Ao contrário de muita gente que
aparentemente critica por não gostar de fulano ou beltrano, ou deste ou daquele
partido, eu critico com base em princípios políticos que considero importantes
para a minha avaliação da situação do país. Não passo a vida apenas a
distribuir “likes” aos “posts” que falam bem do partido ou dos políticos com os
quais simpatizo, nem ando a compartilhar apenas textos daqueles que falam mal
dos partidos e políticos com os quais não simpatizo. A crítica baseada em
princípios constitui o ponto central da minha abordagem do político e disso não
vou abdicar por muito que isso incomode as ovelhas disfarçadas de intelectuais
que andam pelo facebook a envenenar o ambiente de debate. E, modéstia a parte,
enquanto o tipo de postura que procuro manter na minha abordagem das coisas da
nossa terra for coisa de minoria duvido que Moz avance à medida do seu
potencial. De cada vez que aparece alguém aqui no meu mural a colocar o seu
“like” a um “post” que critica a Frelimo e que essa pessoa o interpreta como
“falar mal da Frelimo” porque é isso que essa pessoa sabe fazer; e de cada vez
que alguém se exalta com a crítica porque essa mesma pessoa interpreta a
crítica como “falar mal da Frelimo” simplesmente porque essa pessoa acha que só
se deve falar mal dos outros, fico mais desiludido ainda com a qualidade das
nossas abordagens.
O maior e mais importante partido
do país, aquele que reúne talvez o maior número das melhores cabeças da nossa
terra, realizou uma das maiores farsas políticas de que há memória no país a
qual chamou de Congresso. Persistiu na confusão entre partido e estado – uma
das razões por detrás da vulnerabilidade do Governo à chantagem da Renamo –
reduziu a unidade à unanimidade, continuou a preferir slógans vazios à reflexão
estratégica profunda e intronizou a aclamação no lugar do debate crítico,
honesto e reflectido dos assuntos. Como nos velhos tempos da Frelimo gloriosa
transformou-se o Congresso num momento de festa que celebrou a complacência,
estimulou o oportunismo como qualidade importante para se ser membro e relegou
o país à condição de apêndice da vontade de indivíduos ruidosos, disciplinados
e dóceis. Confundiu a capacidade de cumprir com uma boa parte dos seus
estatutos com “democracia interna” e contentou-se com gestos como manifestação
de vontade política.
Seis pessoas salvaram a honra da
Frelimo neste Congresso. Os cinco que votaram em branco e o que teve voto nulo
no plebiscito que se fez para a presidência do partido – e que as ovelhas
ruidosas insistem em chamar de “eleição”. Como se pode ver, muito pouco para
inspirar confiança. É claro que não sei quais foram as motivações destas
pessoas, se calhar nem perceberam o que tinham sido chamadas a fazer. Mas esses
seis votos deviam envergonhar a todas as pessoas de bem que militam no partido,
têm dúvidas em relação à maneira como as coisas são feitas, têm ideias
alternativas, mas por excesso de fidelidade, ou falta de coragem, preferiram
trocar a sua consciência e juntar o seu “sim” à manada. Os quase 100% que o
presidente obteve não documentam a coesão da Frelimo. Não podem. Documentam uma
unanimidade doentia que só pode fazer mal ao país. Documentam uma estrutura
interna rígida que é hostil à reflexão crítica. Todo o resultado que vai para
além dos 80% - e estou a ser generoso – revela um partido com pouca democracia
interna, com pouco sentido crítico e com pouca coragem.
Este Congresso incomoda-me por
duas razões. A primeira, e principal, é que revelou que o partido mais
importante do país, aquele que tem o mandato para governar, não só não faz a
minima ideia dos problemas do país como também não tem imaginação suficiente
para se pôr à procura dessas ideias. Desde o discurso de abertura – um desastre
autêntico – até ao programa – uma afronta à inteligência dos moçambicanos – o
nível foi consistentemente baixo. O lema “unidade, paz e desenvolvimento” não
podia ter sido mais inócuo. Ficou pouco claro para mim se é o instrumento da
Frelimo para fazer um Moçambique melhor, ou se o Moçambique melhor é aquele que
assenta nessas três coisas. Sabendo das grandes cabeças que a Frelimo tem no
seu seio, fico sinceramente atónito que as coisas tenham ficado por aqui.
Suponho que seja a “democracia interna” em acção...
A segunda razão tem a ver com um
“déjà vu”. Lembra muito o segundo mandato de Guebuza quando o “poder da
Frelimo” apertou o cerco ao presidente usando o triunfalismo típico de sistemas
autoritários para promover uma imagem de si e do país que era apenas função do
oportunismo de alguns. A história repete-se. Está-se a transformar Nyusi num
indivíduo infalível e todo-poderoso. E o pior é que ele também começa a
acreditar nisso. Daí a pensar que os assuntos do país sejam melhor discutidos
por um grupinho de pessoas à revelia não só do público como também do seu
próprio partido é apenas um passo. Desse passo a ter um contexto político em
que decisões importantes são tomadas sem respeito ao conselho técnico – porque
se este for contrário vai ser visto como afronta, insubordinação ou
simplesmente contestação do partido – não há uma grande distância. Olá dívidas
ocultas...
A Frelimo é um grande partido, mas
é cada vez mais vítima da sua própria complacência. Tem muita gente no seu seio
que se comporta como a torcida duma equipa de futebol que por ter mais meios
financeiros domina o campeonato nacional. Confunde vantagem estrutural com
capacidade. Eu sou apenas simpatizante, por isso estou-me nas tintas para a sua
sorte. Mas tratando-se do partido que domina os destinos do país, preocupa-me
esta complacência. Alguém dentro da Frelimo tem que ter a coragem de bater com o
punho na mesa e despertar os outros da sua complacência letárgica. Isso passa
por reflectir seriamente sobre três desafios fundamentais.
Primeiro, política não se faz ao
nível da solução de problemas circunstanciais. Faz-se ao nível da identificação
de problemas estruturais que estão na origem de todo um conjunto de problemas
circunstanciais. Mesmo que a pseudo-intelectualidade nacional fique feliz da
vida quando se declara a corrupção como principal problema, ela não é. O
problema é a intransparência institucional para a qual a confusão entre partido
e estado contribui. O melhor documento de compromisso com o combate à corrupção
teria sido um debate sério sobre como o partido pretende abordar o problema da
intransparência institucional.
Segundo, e ao contrário do que
muitos pensam, o problema da Frelimo não é ter muitos bajuladores no seu seio.
O problema é de se atribuir mais importância à lealdade/fidelidade ao partido
do que à reflexão crítica. Quando um presidente por enquanto sem obra visível é
confirmado no cargo com percentagens norte-coreanas é mais do que certo que uma
boa percentagem dos delegados não está a ser honesta consigo própria e com a
sua consciência. Unanimidade não é coesão. É conformismo e seguidismo.
Terceiro, o autismo partidário que
leva muitos militantes da Frelimo a partirem do princípio de que enquanto a
Frelimo estiver bem o país também está bem compromete o partido com uma
representação surreal do país. Uma representação nesses moldes nunca vai ser
uma boa base para a formulação de políticas coerentese exequíveis.
É muito deprimente que
possivelmente só seis delegados tenham visto que estavam no filme errado. E
reagido. Unanimidade, harmonia e litanias é coisa de seitas religiosas, não dum
partido político. O país ficou órfão na Matola. (Por Dr.Elisio Macamo (sociologo) in facebook)
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