Em defesa de Arménio Carlos vieram
muitas outras pessoas, mais e menos anónimas. Com argumentos variados. Uns, que
nem deveriam merecer grandes comentários: criticar Arménio Carlos para defender o
representante do FMI, nas circunstâncias em que o País vive, é dividir a
oposição à troika e
ajudar o inimigo. A ver se nos entendemos: considero a troika inimiga
dos interesses do País e da justiça social. Mas isso não permite tudo. E não me
permitirá a mim, com toda a certeza, esquecer outros valores e outros combates
tão essenciais como os que agora se travam. O facto de ser dito pelo líder da
CGTP, organização em que muitas vezes me revejo, torna a coisa mais grave para
mim. Se não criticamos os nossos nunca teremos autoridade para criticar os
outros.
Outro argumento foi um pouco mais
sonso: então ele não é mesmo mais
escurinho? Qual é o problema? A
não ser que passe a ser normal responsáveis políticos referirem-se a
adversários desta forma, tudo bem. Será, assim, natural ouvir em intervenções
públicas falar do ministro das finanças alemão como o "aleijadinho"
(ele, de facto, anda de cadeira de rodas, não anda?), a António Costa como o
"monhé" (ele, de facto, tem origem indiana, não tem?), a Jaime Gama
como o "badocha" (ele, de facto, tem uns quilos a mais, não tem?), a
Ana Drago como a "pequenota" (ela, de facto, é baixa, não é?), a
Mário Soares como o "velhadas" (ele, de facto, já não é jovem, pois
não?), a Miguel Vale de Almeida como "larilas" (ele, de facto, assume
publicamente a sua homossexualidade e faz da luta pelos direitos LGBT uma parte
fundamental do seu combate político, não faz?). Espera-se, no entanto, que o
debate público mantenha algumas regras de civilidade. E, sobretudo, que não
alimente alguns preconceitos importantes. Arménio Carlos não disse o que disse
num café, onde a conversa se pode aligeirar sem problemas. Disse o que disse
numa intervenção pública oficial.
Por fim, porque
não há oportunidade em que a expressão não seja usada a propósito ou a
despropósito, veio a costumeira acusação do "politicamente
correto". A ver se nos entendemos: o politicamente correto tem um
sentido. E esse sentido resume-se assim: as palavras não são neutras e carregam
consigo história, cultura e política. Por isso, devemos usá-las com correção.
Não quer isto dizer que devemos ser bem comportados ou que devamos fazer de
cada frase um manifesto político. Quer dizer que não devemos usar as palavras
ao calhas. Pelo menos quando estamos a falar ou a escrever na arena pública e
não conhecemos as convicções mais profundas dos nossos interlocutores. Há,
claro, excessos de purismo no politicamente correto. Que me irritam, como me
irritam todos os purismos. Mas o princípio está certo e não é preciso ser
especialmente adepto dele para não gostar de ouvir falar de um responsável
público como "escurinho".
Portugal é um país racista. Tem uma longa história de racismo. E uma longa
história de negação desse racismo. É um racismo
suave, sorrateiro, com diminuitivo (como "escurinho"), que não se
exibe de forma descarada na praça pública. É, talvez, das formas mais
insidiosas de racismo. E um homem que se enquadra numa corrente política com
provas na luta contra o racismo e a discriminação, como Arménio Carlos, tem
obrigação de saber isto. É por isso que o incómodo com esta afirmação deve ser maior
por vir da sua boca. Não
duvido, no entanto, que se a expressão tivesse sido dita por um homem de
direita a indignação seria muito mais violenta. E mal. A direita tem, nesta
matéria, menos responsabilidades. Não porque a direita seja, em geral, racista,
mas porque acredita, em geral, que os portugueses não o são. É, por isso, menos
vigilante consigo própria.
Se repararmos, Abebe
Selassie é o primeiro negro com algum poder real em Portugal. Ou seja, num país razoavelmente
multiétnico, o primeiro negro com algum poder só o consegue ter porque esse
poder não resultou da vontade dos portugueses. Há, que me lembre, apenas um
deputado negro no parlamento - e é do CDS. Não há nenhum presidente de Câmara,
nenhum ministro, nenhum secretário de Estado. Isto tem de querer dizer qualquer coisa. Ou quer dizer que os portugueses não votam em negros ou quer dizer que a generalidade dos negros não consegue ascender socialmente no nosso país para chegar a cargos públicos relevantes. Porque são geralmente discriminados ainda antes de chegarem à fase de poder ascender a estes cargos. São discriminados na distribuição do rendimento, dos empregos, das oportunidades. E é neste contexto, e não numa sociedade que dá a todos, independentemente da sua etnia, as mesmas oportunidades, que Arménio Carlos falou de um "escurinho".
nenhum ministro, nenhum secretário de Estado. Isto tem de querer dizer qualquer coisa. Ou quer dizer que os portugueses não votam em negros ou quer dizer que a generalidade dos negros não consegue ascender socialmente no nosso país para chegar a cargos públicos relevantes. Porque são geralmente discriminados ainda antes de chegarem à fase de poder ascender a estes cargos. São discriminados na distribuição do rendimento, dos empregos, das oportunidades. E é neste contexto, e não numa sociedade que dá a todos, independentemente da sua etnia, as mesmas oportunidades, que Arménio Carlos falou de um "escurinho".
Arménio Carlos
não se referiu aos outros dois representantes da troika como "o carequinha" e o
"loirinho". E é normal. Carecas e loiros há em muitos cargos
semelhantes. Não chega a ser um elemento distintivo. "Escurinhos" é
que há poucos. Ou melhor, não há nenhum. Só que essa característica física não
é comparável a outras que aqui referi. Ela é causa de uma discriminação
muitíssimo mais profunda. E foi isso que Arménio Carlos, sem o querer,
acentuou: em vez do nome e do cargo, sobrou a Selassie (que eu aqui já critiquei
violentamente sem me ocorrer falar da sua cor de pele) o facto de ser
"escurinho".
Selassie não
foi identificado como etíope, que é, como técnico do FMI, que também é, como
alguém que usa óculos, que usa, que é careca, que também é, ou que é
politicamente incompetente, que parece ser. É negro. Não pretendo que sejamos
cegos perante a negritude. O que fica claro é que, mal
surge um pessoa com algum poder no nosso país que seja negra passa a ser essa a
forma mais evidente de a identificar. Com direito a dimunitivo.
Que isso aconteça num café ou entre amigos não me choca. Que seja essa a forma
como o secretário-geral da CGTP se refere a um adversário político - e o facto
de ser um adversário político e da frase ter sido dita no contexto de um ataque
político só torna a coisa mais grave - numa iniciativa pública é relevante.
Arménio Carlos
é racista? Não me parece. Mas a indignação não resulta de uma qualquer
avaliação do carácter ou das características políticas de Arménio Carlos. Resulta
do que a frase que proferiu num contexto oficial acrescenta ao discurso
político em Portugal. Mais grave: o que ela acrescenta ao combate a uma
intervenção externa que está a deixar as pessoas desesperadas. A
intervenção externa é condenável, mas nunca se pode passar a ideia que ela é
condenável porque envolve um "boche" ou um "escurinho". Porque,
mesmo que não seja essa a intenção de quem assim falou, isso transforma uma
resistência em defesa da soberania democrática num ataque xenófobo. Repito:
mesmo que não seja, e estou seguro de que não era, a vontade de Arménio Carlos.
É que o sentido das palavras ditas na arena pública não depende da vontade de
quem as diz. Dirigindo-se indistintamente a todos - e também a quem seja, e são
muitos, racista -, é apropriável por todos. Por isso somos obrigados a
especiais cuidados quando as dizemos no espaço público.
Arménio Carlos
já veio dizer que não sabe de ninguém que tenha ficado pessoalmente incomodado.
E que se alguém ficou, transmite as suas desculpas. Arménio Carlos é um
político e tem obrigação de saber que a questão não é o incómodo pessoal de
cada um. O confronto político permite o incómodo dos outros. Ele
até poderia insultar Selassie. Mas deve pensar bem se o insulto que
escolhe corresponde aos valores políticos que defende. A questão é o que a expressão,
ainda mais com o diminutivo paternalista, revela. E se há coisa que um político
tem de saber é que as palavras, sendo parte fundamental do seu ofício, são
importantes. Um trabalhador pode ser um "colaborador"? Pode. Um
despedimento colectivo pode ser uma "reestruturação" de uma empresa? Pode.
E, como tão bem sabe Arménio Carlos, não é indiferente se usa umas ou outras
expressões. Mesmo que ninguém fique pessoalmente incomodado por ser chamado de
"colaborador". Porque, como gritava Nanni Moretti, "as
palavras são importantes". E em política elas são muito importantes. Mesmo quando não se quer ofender ninguém.(D.Oliveira)
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