terça-feira, agosto 09, 2022

Navara de duas pernas


A caça furtiva é alimentada por grandes redes criminosas cujas conexões começam localmente, passando pelo resto do país até para fora das fronteiras nacionais. O esquema obedece a uma pirâmide. No nível mais baixo, estão os caçadores, propriamente, ditos, que são constituídos, na sua maioria, por jovens locais provenientes de famílias pobres. Este grupo compreende, normalmente, três a quatro elementos. Tem a missão de atravessar a fronteira até ao Parque Nacional de Kruger para abater os animais e lhes extrair os cornos ou chifres. Cada um destes elementos tem tarefas específicas. Um ou dois transportam mantimentos para a alimentação do grupo durante o período de permanência nas matas. Um é o guia responsável pela localização da área onde os animais frequentam.

Outro é atirador, missão que exige alguma perícia, pelo que, a carreira militar ou para-militar é fundamental. Geralmente, é o mais pago do grupo. A remuneração pelo trabalho é feita no regresso, após a entrega do produto e das armas. A media paga a cada equipa de operativos é de 100 a 200 mil meticais, dependendo do tamanho do corno. Para evitar o desvio do produto, os caçadores são monitorados desde à partida até ao regresso e, em caso de suspeita, a sanção é severa e, nalguns casos, paga-se com a propria vida. Com o dinheiro resultante da caça furtiva, muitos jovens investiram em mulheres, bebidas alcoólicas, roupas de marca e viaturas de alta cilingragem. 

Hoje, tudo desapareceu e a pobreza continua evidente. Em muitos pontos de Massingir abundam cenários de crianças órfãs, viúvas, famílias na desgraça porque os seus responsáveis estão detidos ou inabilitados; viaturas avariadas e abandonadas por incapacidade de manutenção; casas inacabadas e as concluídas a demostrarem sinais de falta de manutenção e estabelecimentos comerciais encerrados por falta de clientela. Ainda neste nível, também entravam alguns membros da comunidade e curandeiros. Os primeiros albergavam os furtivos, no período diurno, na ida ou no regresso das matas. Os furtivos movimentam-se à noite, período mais seguro.Por sua vez, os curandeiros “purificam” os caçadores e seus equipamentos, na crença de que os furtivos não terão adversidades no terreno. Em todo este nível, a pobreza é dos elementos motivadores para a adesão à teia criminosa. O segundo segmento é composto por mandantes/compradores e intermediários locais. São eles que fazem a ligação entre os operacionais e os mandantes nas grandes cidades.

É aqui onde entra o “Boss Navara” de nome Simon Valoi, 45 anos, Navarra fdetido, em Marracuene,na tarde do dia 26 e outros barões de renome como é o caso dos “bosses Nyimpine”[Justice Ngovene], “Calisto”, “Encarnação”, “Matimisse”, Chiure e Matsolo. Protegido e intocável, este segmento tem a missão de criar condições para o abate de animais, extrair o produto de interesse económico e transportá-lo para outros intermediários nas grandes cidades, sobretudo na capital do país, Maputo. 

São eles que recrutam os operacionais, fornecem armas, munições, logística e, no regresso da missão, recebem o produto e remuneram os operativos. Em caso de detenção de operacionais, dentro do território nacional, pagam advogados e criam condições para a libertação dos presos e, em caso de morte, assumem despesas fúnebres e canalizam algum valor às famílias enlutadas, numa espécie de “subsídio de sangue”. Na sua última edição, o jornal Expresso de Portugal escreve que o homem agora detido é mandante. Tinha equipas de operacionais que incluíam oficiais da polícia e das forças armadas no activo e desertores. Sublinha que em Mavodze e Massingir o “Boss Navara” é conhecido pelas suas acções de caridade, e por isso, era um protegido da população local. Controlava o Estado a nível local e provincial, desde a polícia até aos órgãos da justiça, como a procuradoria. Segundo o “Expresso”, num texto assinado pelo jornalista moçambicano Lázaro Mabunda, um conhecido investigador do fenómeno em Massingir, a maioria das armas  usadas pelos mandatários de Navara era da Polícia da República de Moçambique. O aluguer de uma arma custava 650 mil meticais, o mesmo preço de uma munição. Sublinha que há indícios de armas de fogo apreendidas pela polícia, mas que dias depois eram retiradas e entregues, em regime de aluguer, de novo aos caçadores. A fonte avança que, por exemplo, uma arma do tipo Mauser 375, própria para a caça de rinocerontes, que foi apreendida três vezes entre 2008 e 2011. 

Da primeira vez foi recuperada pela Guarda Fronteira, em 2008, em Pumbe, uma das localidades de Massingir, e depositada no comando Distrital da Polícia em Massingir. A segunda vez foi a 26 de agosto de 2010, quando a mesma arma foi recuperada na região de Godji, pela mesma Guarda Fronteira, e imediatamente entregue ao comando distrital de Massingir. A última vez foi a 30 de dezembro de 2011, quando foi apreendida nas mãos de Luís Mongue, caçador furtivo, em Massingir. Mongue viria a ser solto por ordens do comandante distrital local mediante pagamento de suborno de 120 mil meticais. É a partir das grandes cidades, onde está o terceiro grupo de intermediários, que fazem as conexões internacionais. Os barões das grandes cidades incluem políticos de renome e “empresários de sucesso”, geralmente próximos ao poder do dia. Estes, têm o cuidado de apagar qualquer pista que lhes ligue ao crime da caça furtiva, sendo por isso completamente insuspeitos aos olhos do público em geral. O quarto grupo é constituído, principalmente, por estrangeiros, com enfoque para vietnamitas, chineses e outras nacionalidades asiáticas, que são responsáveis pela “exportação” dos produtos da caça furtiva.  Não é por acaso que, quando há detenções relacionadas ao tráfico da vida selvagem, os visados são, principalmente, cidadãos da Tailândia, Vietname, China e outros países asiáticos.

No meio de uma penúria arrepiante que caracteriza o distrito de Massingir, há quem leva uma vida de luxo. As magníficas construções que despontam entre a generalidade das cabanas que fazem a arquitectura do distrito, são apenas a ponta do iceberg dessa outra face de Massingir. Um denominador comum é que,no geral, os donos dessas construções de luxo não têm empregos, publicamente, conhecidos, com rendimentos justifiquem tanta riqueza que ostentam. Mas, afinal, o que a sua riqueza esconde é que eles são os barões da caça furtiva, em Massingir. Justamente defronte da residência principal do “Boss Navara”, no bairro 6, uma outra construção de luxo chama atenção. É a casa do “Boss Calisto”, também ele um peso pesado no negócio da caça furtiva, em Massingir. O “Boss Calisto” tem negócios no ramo dos transportes, com autocarros a partirem de Massingir para vários destinos, casos de Chókwè, Xai-Xai e até a vizinha África do Sul. Mas, diferentemente do seu vizinho, o “Boss Calisto” tem caminho aberto para entrar na África do Sul, de onde, ao regresso, presta serviços de entregas de produtos, vulgo delivery, da sigla em inglês. 

No bairro 4 da vila de Massingir vive, muito próximo do campo de futebol, o “Boss Nyimpine”. Construiu uma casa e outra ainda em obra. Mas também tem uma casa résdo-chão e primeiro andar no bairro 6. É arrendada. Tem alguns interesses na produção agrícola. Tal como a maioria dos barões da caça furtiva, já foi preso, mas, graças às suas influências junto ao poder local, foi sempre restituído à liberdade,bastante um telefonema às altas patentes da Polícia e altos funcionários públicos em Massingir.

Também vive no bairro, o “Boss Encarnação”, não muito distante da residência do “Boss Nyimpine”. Quando o “Boss Encarnação” quis começar a construir, o negócio da caça furtiva estava a entrar nos seus piores momentos, com a intensificação da fiscalização, principalmente, do lado sul-africano. Por isso, a sua residência ainda não está concluída. Trata-se de uma casa de placa tipo 4, com garagem, cozinha e casa de banho internos. Em sectores mais próximos, o SAVANA soube que, uma das tácticas que eram usadas nos tempos áureos da caça furtiva consistia em cortar a rede de protecção animal,  para permitir que os animais atravessassem da África do Sul para o lado moçambicano, para aí serem, facilmente, abatidos, dadas as fragilidades de fiscalização mas, sobretudo, as conivências políticas com a elite corrupta local.


0 comments: