O livro “Tchova Xitaduma” de Paulo Zucula aborda um tema de candente actualidade num capítulo intitulado “Democratizar a Tribo ou Tribalizar a Democracia”. Partilho em seguida um extracto desse capítulo.
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“O estabelecimento de sistemas democráticos modernos em nações Africanas onde ainda existem tribos com instituições funcionais próprias, é um desafio na medida em que o modelo democrático moderno nasceu, cresceu e se reproduziu muito longe de África, restando a esta aplicá-lo tal e qual prescrito pelas nações que têm mais de meio século de prática. Ademais, em muitas mentes Africanas, a tribo ainda impera acima do conceito de nação. Os Países Africanos estão numa encruzilhada única em que estão a montar modelos democráticos importados por cima de conceito de nação ainda imberbe. Isto deveria servir para mostrar aos líderes de Países Africanos, (incluindo Moçambique) que é loucura tentar emular os sistemas democráticos que tem mais de 500 anos de existência, tentado ignorar, manipular ou desacreditar a existência de grupos étnicos e tribais com instituições próprias e funcionais.
Em Países como Moçambique o tradicional e moderno (quase sempre importado) encontram-se mas não cruzam em nenhum ponto identificado. Com muito poucas excepções, as nações africanas têm menos de 70 anos como Países e ainda com uma grande presença de dominação de tribos e etnias com as suas formas colectivas de tomada de decisões. Antes da colonização, nenhum dos Países Africanos era uma nação na forma que é hoje. É, provavelmente, por estes factores que o sistema democrático moderno se tenta impor destruindo ou negligenciando as formas tradicionais de exercício democrático. Os conflitos entre o tradicional e o moderno e as fissuras que se criam no funcionamento de uma e de outra criam espaços para que o poder oportunista se intrometa e jogue no meio desta mistura para se estabelecer e pregar os seus interesses, que em muitas ocasiões têm pouco ou nada a ver com os interesses da sociedade.
Pela história de Moçambique independente, pode-se deduzir que o Partido FRELIMO, que acelerou a libertação do jugo colonial, trazia com ele uma nova ideologia, novos princípios e valores e uma orientação política, que na primeira fase da euforia pela autodeterminação, tinha aceitação junto da maioria dos Moçambicanos. Estas características pretendiam no fundo estabelecer novos laços que ligassem todas as tribos para a emergência de uma mega-tribo de cariz ideológica e nacional. Quando alguém queria aderir formalmente a esta mega-tribo, tinha que aceitar as regras, os valores e os princípios que norteavam a FRELIMO. Infelizmente, a FRELIMO não aceitava a existência de outras tribos ideológicas, nem mesmo as tradicionais que eram e são milenares e pilares das comunidades nacionais. Era um esforço titânico de criar uma nação e uma ideologia únicos. A euforia passou, o mundo ocidental condenou e impediu a continuidade do socialismo, e a missão falhou. A viragem para o sistema de economia de mercado e para um sistema político baseado nos valores democráticos modernos e ditos universais esvaziou a FRELIMO dos seus princípios e regras, porque estes estavam conotados com os valores do chamado comunismo, que era o inimigo número um do sistema de economia de mercado.
O vazio criado não foi preenchido. Foi simplesmente substituído pela necessidade imperiosa de manutenção do poder dos Partidos via eleições. Os Partidos políticos que foram surgindo chegaram com uma orientação central de tirar o poder à FRELIMO na mesa do voto. A ideologia, os princípios e regras de cada um desses partidos ou não são expostos, ou são relegados para um segundo plano. Quando em campanhas eleitorais, além de cada Partido criticar o outro, os seus programas e as suas apostas e manifestos parecem copiados uns dos outros, o que dificulta distinguir um Partido do outro na sua essência ideológica. O alvo principal de cada um é governar. É a luta do poder pelo poder. Busca-se o poder político para chegar ao poder económico e vice-versa. Dentro dos Partidos, os seus militantes passaram também a concentrar a sua energia para subir na escada do poder, provocando lutas silenciosas entre os seus colegas militantes, erodindo cada vez mais a sua coerência interna. A democracia se resume às eleições e não na escolha colectiva das melhores opções de desenvolvimento.
Este cenário começa a ganhar contornos quase insanáveis porque o vício do poder parece espalhar-se, qual doença e contagiante, entre algumas organizações da sociedade civil, associações de negócios e outros. A confiança da população nos Partidos políticos e mesmo na sociedade civil começa a ganhar contornos que desacreditam o sistema democrático que está a ser implementado. Mas, por outro lado, porque o poder do voto nas eleições passou a ser um instrumento incontornável para aqueles que ambicionam ser chefes, estes precisam recorrer à população que acredita cada vez menos neles. Aqui nasce o “vale tudo”, incluindo recorrer à fabricação de problemas entre tribos e regiões, batotas eleitorais, compra de consciências, erosão dos valores de cidadania, etc.
A ausência de ideologia sólida, de princípios éticos e morais nos Partidos criou espaço para que a tribo de cariz de linhagens familiares e de clãs voltasse a buscar um lugar no centro do palco político e do poder, e nas atitudes de muitas pessoas com poder de influenciar a opinião pública.
Desde as últimas eleições autárquicas de 2018, em Moçambique, assiste-se a um tom crescente que, aberta ou veladamente, mistura de forma confusa e difusa a democracia com as tribos.
Um pouco antes das eleições gerais de 2014, se discutia mais ou menos abertamente entre as elites e militantes de alguns Partidos, se o próximo Presidente da República deveria ser conotado ou não com a sua região ou grupo étnico. Estava presente a confusão entre a região e a tribo de linhagem. Uns advogavam que o próximo Presidente deveria ser do Norte, ou do Centro (região), pois já tinha havido Presidentes da República oriundos da região Sul. Outros viam o critério de escolha de candidatos a Presidente pelo lado do clã ou tribo, defendendo que deveria ser Macua ou Makonde. Como já tinha havido dois Presidentes Shanganas e um Ronga, estes estavam objectivamente excluídos nos próximos sufrágios. Mas, curiosamente não se falava ou se falava muito pouco da possibilidade de Presidente Ajawa, Nhungue, Chuabo, Manhembani, Matswa e muitos outros. Na maioria dos debates e análises televisivos, bem como nas conversas nas redes sociais, a meritocracia, integridade e compromisso com a causa nacional eram vistos abaixo do critério tribal e regional. Nalguns círculos, o tom de se dar primazia à tribo, grupo étnico ou região, tomava um sentido agressivo em relação à necessidade de “fazer pagar” por exclusão, determinados grupos sociais, sobretudo aqueles que já tinham passado pelo poder.
Os analistas que procuram entender e fazer entender os processos e resultados dessas eleições autárquicas reflectem essa mixórdia que vai desde batotas nos pleitos eleitorais, uso e abuso da tribo para fins pouco saudáveis, até à confusão no conceito de descentralização. Essas análises, de forma subtil ou explícita especulam que grande parte do voto não foi voto partidário, mas sim tribal, étnico e regionalista. Diz-se que em algumas cidades que eram tradicionalmente de um certo Partido político, houve pessoas que saíram das suas regiões para essas cidades e aí exercer o seu direito de voto para o candidato da sua tribo, clã, grupo étnico ou região. Também se apregoa que os Partidos têm as suas raízes em determinadas regiões, fazendo pensar que os Partidos políticos têm raízes tribais. Ao nível económico sente-se a mesma força divisionista com base na tribo. Ouve-se e lê-se com insistência que a tribo ou grupo étnico que está no poder (entenda-se o clã dos líderes) reclama para si o direito às oportunidades de negócios, com exclusão premeditada de outras tribos. Cada região ou tribo “come” por vez no processo de alternância do poder. Analistas com certa credibilidade intelectual até questionam os processos de tribalização da democracia, advogando, por exemplo, que não se deveria ter passado o poder do Sul para o Norte do País, sem passar pela região do Centro. E tudo isto defendido como se fosse ciência e academia.
O que quer que se diga e que se entenda foge totalmente da asserção da consolidação do sistema democrático. De facto não há nada que objectivamente indique que a FRELIMO é da região sul, ou dos matshanganas pois na sua composição, mesmo ao nível da cúpula, é tribalmente heterogénea. O mesmo se pode dizer da RENAMO. É possível que dentro de cada Partido haja lutas que pareçam tribais, mas isso não passa de artimanha de luta pelo poder em detrimento da consolidação da democracia.
No meio disto tudo não existem evidências claras que mostrem que o povo Moçambicano seja tribalista. O pouco que existe registado parece indicar que houve mais assimilação entre as tribos e grupos étnicos/linguísticos do que escaramuças motivadas por diferenças. Grande parte dos grupos étnicos que povoam Moçambique faziam parte de um grupo maior denominado de Ngunis que incluía os Xhosas, Zulos, Ndebeles e Swatis. O grupo todo, sem querelas tribais dignas de realce parece ter vindo da Região dos Grandes Lagos para o Sul em movimento migratório e não de guerras de conquistas de outras tribos. No processo migratório foram se fixando em várias partes do Sul do continente Africano interagindo normalmente com as tribos locais. A chamada tribo dos Ndaus da região da província de Sofala parece ter origem na região de Mbire no Zimbabwe. Mbire era um pequeno reinado do grande Reino de Mwenemutapa, mas que se tornou independente com a desagregação do reino dos Mutapas. Essa desagregação parece ter surgido por querelas entre a família real e não uma guerra de tribos. Os Ndaus, mais motivados pela busca de comércio com os árabes, movimentaram-se mais para o sul chegando a atingir a zona de Chimoio, Búzi e Sofala. Face ao declínio do comércio com os árabes e lutas entre membros da família real, muitos Ndaus se movimentaram ainda mais para o sul chegando a Matchaze, Arquipélago de Bazaruto e até Inhambane, onde se teriam misturado com grupos étnicos do sul. Ainda hoje é comum encontrar casos em que os “nhamussoros” da zona de Gaza, falantes de shangana, quando encarnam um espírito do passado expressam-se em Ndau. Brazão Catopola defende com testemunhos populares que desde há muitas centenas de anos que existe amizade e solidariedade entre os Makondes e os Yahos. O “huvilo ” estabelece uma relação de amizade entre Makonde e Yao, Makonde e Nguni e Makonde e Mungu.
Estes exemplos de mais harmonia que disputas entre grupos tribais e étnicos de Moçambique são encontrados em todas as regiões do País. A maioria do povo moçambicano não parece ter estado nem estar mergulhada em guerras tribais. É talvez por isso que a região sul do País votou de forma esmagadora no actual Presidente da República, nascido em Cabo Delgado. O líder da RENAMO teve mais votos em Sofala do que em Nampula, sua província natal. Empiricamente, isto demonstra que o tribalismo que procura antagonizar grupos étnicos diferentes é fomentado mais pelas elites oportunistas do poder do que pela população. Mesmo quando se diz que a tribo tal já “comeu” e por isso agora é vez da tribo tal, não passa de uma artimanha, pois a maioria das pessoas de todas as tribos do País continua com fome e com sede, à espera de melhores oportunidades. De facto, se há alguém que “já comeu” e “está a comer” são as elites, independentemente da sua tribo, partido ou região.
O fomento de interesses tribais onde eles não existem vai esvaziar mais a democratização do País. A alteração dos processos para a eleição do Governador da Província com base na lista dos candidatos às Assembleias Provinciais (cabeça de lista de um Partido), vai reforçar nalgumas mentes a noção de escolha com base na tribo. Isto porque a configuração geográfica actual das províncias foi feita pelo sistema colonial com base em grupos étnicos, na teoria de “dividir para reinar”. Por isso o Governador Provincial e os membros da Assembleia Provincial vão ter que ser daquela Província e, portanto, maioritariamente do grupo tribal ou étnico dominante naquela Província. Se isto for explorado como tribalização corre-se o risco de se dividir o País em vez de atingir os nobres objectivos de descentralização. Dentro da mesma Província vai haver lutas titânicas de cariz tribal para se escolher o cabeça de lista de um Partido. A almejada consolidação da descentralização pode descambar em fragmentação geográfica com consequências imprevisíveis e incontroláveis. Ou ainda como diz o filósofo Severino Nguenha “o esquema que foi montado favorece o surgimento de grandes aparatos partidocráticos”. Ou seja, o formato pode levar a uma centralização do poder, subordinando todas as regiões e as suas tribos.
A questão de convivência de sistemas modernos de democracia com a organização social com base na tribo parece ter uma resposta óbvia e positiva, se considerarmos que a proto democracia e a democracia moderna não colidem. Pelo contrário, um pode ser o percursor do outro. É uma questão de enveredar pela consolidação da democratização da tribo, e rejeitar a tribalização da democracia.”
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