quarta-feira, junho 02, 2021

Empréstimo salgado

A rodovia de 41 km custou quase US$ 1 bilhão e atravessa montanhas com túneis e vales com pontes imponentes na paisagem bucólica de Montenegro. Mas, até o momento, não leva a lugar nenhum e ameaça quebrar a economia do pequeno país de pouco mais de 600 mil habitantes na Europa. Após seis anos de obras, o sonolento vilarejo de Matesevo, às margens do Rio Tara, abrigará o improvável fim de uma das rodovias mais caras do mundo.  Quando for concluída, a estrada Bar-Boljare vai conectar a cidade de Bar, na costa do Mar Adriático em Montenegro, à vizinha Sérvia, passando pela capital Podgorica.

Mas há um problema. O governo já gastou US$ 944 milhões em empréstimo com um banco chinês para concluir o primeiro trecho da estrada, de apenas 41 km, entre Podgorica e Matesevo. Ainda é preciso fazer mais 130 km para terminá-la, a um custo provável de, no mínimo, mais US$ 1,2 bilhão. Faltam as ligações entre Bar e Podgorica e entre Matesevo e a fronteira com a Sérvia.  Além disso, a própria Sérvia ainda não assinou acordos para a construção do trecho montanhoso que ligará a autoestrada à sua capital, Belgrado. Sem esses trechos, a estrada não vai a lugar algum.

Em 2014, o pequeno país dos Bálcãs, que é candidato a entrar na União Europeia, pegou um empréstimo de US$ 944 milhões com um banco chinês para que a estatal chinesa CRBC (China Road and Bridge Corporation) construísse o primeiro trecho da rodovia. Trabalhadores chineses passaram seis anos cavando túneis em rocha sólida e erguendo pilares de concreto acima de desfiladeiros, e o trecho que liga o vilarejo de Matesevo aos subúrbios da capital, Podgorica, será inaugurado em novembro. O prazo para começar a quitar o empréstimo começa em julho, antes mesmo de o primeiro trecho ficar pronto (que deveria ter sido inaugurado em maio de 2019, mas atrasou).Caso a dívida não seja paga, uma comissão de arbitragem em Pequim pode obrigar Montenegro a ceder a gestão de importantes infraestruturas do país, segundo cópia do contrato à qual a agência de notícias France Presse teve acesso. O projeto faz parte de uma enorme onda de investimentos chineses nos Bálcãs, que geram preocupação na União Europeia de que os governos locais passaram a depender demais do dinheiro de Pequim.

Em abril, o ministro das Finanças de Montenegro, Milojko Spajic, tentou diminuir a tensão no bloco europeu, insistindo que o país pode pagar a dívida e não precisa da ajuda. "Montenegro tem finanças públicas estáveis ​​e sustentáveis ​​e pode financiar regularmente todas as suas dívidas e obrigações para com os parceiros internacionais", disse Spajic.  Em um relatório de fevereiro, o Conselho Europeu de Relações Exteriores descreveu Montenegro como um "exemplo clássico de diplomacia da armadilha da dívida" — quando um país sobrecarrega outro com dívidas incontroláveis ​​para aumentar sua alavancagem. O empréstimo de US$ 944 milhões equivale a cerca de 15% do Produto Interno Bruto (PIB) que o país tinha antes da pandemia e um quinto da sua dívida externa.Para piorar, Montenegro é um dos países mais afetados pela Covid-19 do mundo (veja mais abaixo) e a pandemia devastou a indústria do turismo, sua principal fonte de renda.

A pequena nação dos Bálcãs tem pouco mais de 600 mil habitantes e o 2º maior número de casos confirmados em relação à população e o 7º maior número de mortes proporcionais.  São mais de 158 mil infectados a cada 1 milhão de montenegrinos, atrás apenas de Andorra, um pequeno principado independente encravado entre a França e a Espanha nos Pirineus.  Montenegro tem também 2,5 mil mortes por Covid-19 a cada 1 milhão de habitantes, atrás apenas de Hungria, República Tcheca, Bósnia e Herzegovina, San Marino, Macedônia do Norte e Bulgária.  Além disso, o país aplicou apenas menos de 29 doses de vacinas contra o novo coronavírus a cada 100 habitantes, patamar próximo ao do Brasil (30) e um pouco acima da média mundial (23).  Mas a imunização está muito abaixo da média da Europa (45) e de países referência na vacinação contra a Covid-19, como Israel (122), Chile (94), Reino Unido (92), Estados Unidos (86) e Uruguai (77). Os dados são do "Our World in Data", projeto ligado à Universidade de Oxford.

Os críticos ao projeto denunciam o impacto ambiental e a possível corrupção na obra. Já os moradores da pequena Matesevo, situada às margens do Rio Tara, defendem a imponente rodovia. "A construção é impressionante e não devemos parar por aqui", afirmou Dragan, um aposentado de 67 anos, à France Presse. "Seria como comprar um carro caro e deixá-lo na garagem"."Para nós, há aspectos positivos. Alguns conseguiram vender suas terras e ir embora, algo que antes era impossível", diz outro morador sobre a comum imigração na região dos Bálcãs. Os gigantescos pilares da ponte fazem com que sua casa, situada bem ao lado, pareça uma casinha de bonecas. "Consegui vender verduras e frangos para os trabalhadores chineses", conta.

 Por Lucas Sampaio, G1

* Com informações das agências de notícias AFP e RFI

 

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