Depois de
tanta incerteza, também ditada pelas circunstâncias próprias do diálogo e das
negociações, chegou-se a um ponto em que foi possível tornar públicos alguns
consensos e submete-los à AR.
O aspecto que
me parece transcendente é que finalmente se deu um passo significativo, na
medida em que se definiu a direcção e o objectivo a alcançar. Pelo que
doravante não se vai mais discutir se avançamos ou não com a descentralização.
O que se pode e deve discutir agora são as formas, o grau e o ritmo do
processo.
Por isso me
parecem precipitadas, ou excessivas, as críticas que proclamam tratar-se de um
total retrocesso da democracia.
Penso que
devemos ter uma perspectiva crítica, esse é um direito e um dever, porque
afinal estamos a discutir o nosso próprio futuro, o que queremos ser e como
queremos ser. Daí que todo o cidadão tem direito á palavra.
Por razões que
todos gostaríamos de poder escrutinar, não houve, infelizmente, uma fase de
socialização desta problemática, nem nos partidos nem na sociedade em geral.
Mas como o debate na AR é o momento em que se vai proceder ao «aprimoramento»
ou «aperfeiçoamento» do documento submetido, é nesse compasso que a sociedade
tem oportunidade de contribuir no debate, fazendo ouvir a sua voz, melhor, as
suas vozes, às quais certamente os deputados estão e estarão atentos.
É neste
espírito e contexto que junto a muitas outras opiniões a presente abordagem.
Das muitas
questões que a Proposta de Lei de Revisão Pontual da Constituição submetida à
AR pelo PR, no dia 9 de Fevereiro de 2018, tem suscitado, considero necessário,
pela sua importância crucial, destacar três, de cuja solução depende a garantia
de uma revisão juridicamente coerente e democraticamente aceitável. Trata-se
das seguintes questões:
1.
A questão da observância ou não do prazo do nr°2 do artigo 291 da
Constituição;
2. A questão da necessidade ou não da dupla revisão;
3. A questão da composição dos Governos Provinciais, dos
Governos Distritais e dos Conselhos autárquicos.
I
Da observância ou não do nr°2 do artigo 291
O nr°2 do artigo 291 fixa um prazo de 90 dias, antes do início do debate, para
o depósito das propostas de revisão. A aplicar-se este prazo ao caso vertente,
o debate só poderia ter lugar em Maio, provavelmente depois, ou então em cima,
do encerramento da sessão da AR, com o risco de sobreposição com os prazos do
calendário eleitoral.
Porém, esta
questão só é suscitada pelo erro na indicação do dispositivo aplicável ao caso.
Com efeito nós estamos perante uma proposta de revisão, a um tempo pontual e
extraordinária, a qual deve ser feita, não ao abrigo do nr°2 do artigo 291, mas
ao abrigo da segunda parte do artigo 293 (Tempo). Portanto o que a AR deve
fazer é assumir, por via de deliberação, os «poderes extraordinários de
revisão, aprovada por maioria de três quartos dos deputados da Assembleia da
República» tal como previsto neste dispositivo.
Assim, este é um falso problema.
II
A questão da «dupla revisão»
É pacífico que
qualquer revisão constitucional deve fazer-se com observância da própria
Constituição. Uma vez que a Constituição estabelece limites materiais ao poder
de revisão, estes deverão ser respeitados sob pena de inconstitucionalidade.
Salvo se, previamente, e antes de a AR entrar na apreciação e deliberação sobre
a presente proposta, proceder á alteração dos limites materiais que a
obstaculizem.
Porém, ainda, no nosso caso a Constituição estabelece, no nr°2 do artigo 292,
que as alterações aos limites materiais «são obrigatoriamente sujeitas a
referendo». Assim, o referendo afigurar-se-ia como uma barreira intransponível,
pelo menos em tempo útil, para a viabilização da presente proposta de revisão.
Contudo, para entendermos a natureza da dificuldade com que nos confrontamos e
o seu carácter, superável ou insuperável, temos que lançar mão de elementos
extra-constitucionais que levam, neste caso, a relativizar o próprio texto da
Constituição. Assim,
1.
O presente texto da Constituição formalmente resulta de um processo de
revisão, tendo sido adoptado por uma maioria de dois terços dos Deputados da
AR.
2. A AR que adoptou o presente texto não foi uma Assembleia
Constituinte eleita para o efeito, mas foi a Assembleia ordinária assumindo
poderes de revisão.
A questão, que
é imperioso colocar, é: se a presente AR tem precisamente os mesmos poderes de
revisão que aquela que adoptou a Constituição de 2004, isto é, nem mais nem
menos poderes, como se pode tomar como intransponível uma condição que funciona
como um super-limite, na medida em que cobre todos os outros limites? Que
funciona como imposição de uma limitação aos poderes de revisão da actual AR
que, como disse, tem exactamente os mesmos poderes da AR que em 2004 adoptou a
presente Constituição?
Tal só seria
admissível se aquela AR de 2004 tivesse sido uma Assembleia Constituinte,
eleita como tal, ou, não o sendo, tivesse submetido a referendo o texto
constitucional.
Não se tendo
verificado nenhuma das referidas circunstâncias, forçoso é concluir que a
presente AR pode alterar, tanto os limites constantes do nr°1 do artigo 292( o
que, aliás, tem sido a prática em relação à Constituição Portuguesa, matriz da
moçambicana) , como o próprio nr°2 desse dispositivo, sem o condicionalismo do
referendo, em processo de revisão prévia ou autónoma.
III
Da desnecessidade de «dupla revisão»
Sem prejuízo de quanto
acaba de ser dito, a suposta necessidade de se proceder por via de uma «dupla
revisão», como condição para se avançar com a presente Proposta de Revisão,
decorre de se considerar que a alteração do modo de eleição dos presidentes dos
municípios, da actual «eleição directa», nos termos do nr°3 do artigo 275 da
Constituição( o qual estabelece que «O órgão executivo da autarquia é dirigido
por um Presidente eleito por sufrágio universal, directo, igual, secreto, pessoal
e periódico dos cidadãos eleitores residentes na respectiva circunscrição
territorial»), para uma eleição por via da Assembleia da autarquia, violaria o
limite material estabelecido na alínea e) do nr°1 do artigo 292.
Vejamos o que estabelece esta alínea e), a saber:
«As leis de revisão constitucional têm de respeitar:
………………………………………………………………………………..
e) o sufrágio universal, directo, secreto, pessoal, igual e periódico na
designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania das províncias e do
poder local;»
Para dissipar
equívocos desnecessários esclareça-se desde logo que «titulares dos órgãos» são
o PR, os Deputados da AR, os membros das Assembleias Provinciais, os membros
das Assembleias autárquicas e os Presidentes das autarquias.
Ora os cidadãos
exercem o direito de sufrágio, nos termos desta alínea e), tanto quando votam
em boletins separados, um para a Assembleia e outro para o candidato a
Presidente do Município, como quando votam num único boletim e numa lista para
todos os titulares. O que se exige neste último caso é que haja a clara e
explícita individualização de quem no boletim de voto é o candidato a
Presidente. E universalmente a forma de designação do candidato, neste caso, é
por via do cabeça-de-lista. Mas isso tem de constar imperativamente na própria
Constituição. E nesse caso continuamos a ter «sufrágio universal, directo,
secreto, pessoal…»
Tanto assim é
que não ocorreria a ninguém considerar que o sistema vigente na RAS, nos EUA,
em Angola ou nas autarquias em Portugal, não respeitasse o princípio do
«sufrágio universal, directo, secreto, pessoal…», quer porque, nos casos da
RAS, de Angola e das autarquias em Portugal (vejam-se no caso de Portugal, o
nr°3 do artigo 239 e a alínea h) do artigo 288 da Constituição), sejam os cabeças
de lista, quer porque, nos EUA, seja um colégio eleitoral eleito pelos cidadãos
a designar o Presidente!
Portanto a
alteração, se for feita nos termos aqui expendidos, rigorosamente não viola a
alínea e) do nr°1 do artigo 292, porque a eleição não deixa de ser directa
(contrariamente ao equívoco que se está a generalizar sobre o que é uma eleição
directa…). Apenas altera o modo como se organiza o sufrágio, sem lhe retirar os
elementos essenciais contidos naquela alínea e). Mas, no caso vertente, constando
o modo específico de organização do sufrágio no nr°3 do artigo 275 da
Constituição, haveria sim que se alterar este dispositivo, sem necessidade de
se mexer nos limites materiais, logo sem se enveredar pelo mecanismo da «dupla
revisão».
O que já não
colhe se forem os partidos com maioria nas Assembleias a designarem
directamente os Governadores ou os Presidentes dos Municípios,
independentemente da ordem em que estiverem nas listas submetidas à CNE e
tornadas públicas. É preciso ter presente que estas listas, uma vez aprovadas e
publicadas pela CNE, são inalteráveis durante todo o processo eleitoral e
durante todo o mandato dos órgãos eleitos.
Pelo que, nesta hipótese de designação directa pelos partidos, que constituiria
uma alteração de todos os pressupostos em que assenta a legislação eleitoral e
o funcionamento das instituições delas resultantes, seria inevitável a «dupla
revisão». E não vou discorrer aqui sobre as insolúveis questões que se
levantariam não só quanto á democraticidade desse processo, como quanto á
juridicidade do mesmo para se poder inserir numa Constituição da República.
IV
Da composição
dos Governos Provinciais
A questão da composição e
do funcionamento do Governo Provincial, na Proposta designado de «Conselho
Executivo Provincial», está omissa, levando a pensar que é tacitamente remetida
á lei ordinária.
Considero que
a ser assim, tudo continuará a passar-se como até aqui, isto é, tal como nas
autarquias com os Presidentes dos Municípios, o Governador que sair das
eleições, irá designar a seu critério os restantes membros do Governo. Do que
vai resultar invariavelmente uma composição monopartidária, independente da
composição pliuripartidária da Assembleia respectiva.
Ora, a ser
assim, não se terá dado absolutamente nenhum passo para a inclusão de que tanto
se fala, nem se terá criado o espaço de convivência e coabitação que é
essencial para a reconciliação. O critério do «the winner takes all» é por
definição excludente, não abre caminho nem á inclusão e ainda menos á
reconciliação. E está visto que estas questões, enquanto ficarem apenas
dependentes da boa vontade das pessoas, não passarão de meros discursos sobre
inclusão e sobre reconciliação.
É imperioso
que a Constituição e as leis estabeleçam as balizas fundamentais que nos levem
a realizar a inclusão e a reconciliação.
Com efeito não
faz sentido que numa Província em que um partido elege o Governador, porque ao
nível da Assembleia ganhou 51% dos assentos, ficando os restantes 49% com os
outros partidos concorrentes, o Governo seja constituído apenas pelo primeiro
partido.
A este nível é
do interesse de todos os partidos, e dos cidadãos em geral, que na composição
do Governo esteja reflectida de forma proporcional a composição da própria
Assembleia. Assim a governação ao nível provincial, distrital e autárquico,
reflectiria a situação real de cada um desses níveis, na sua complexidade e
diversidade.
Certamente que
para se viabilizar a governação poderá haver a necessidade, e em função dos
resultados eleitorais de cada lugar, de fazer coligações pós-eleitorais. Isto é
o que decorre da descentralização e da autonomia, porque a descentralização não
é meramente administrativa: é descentralização política, e como tal, a diversidade
política reflectir-se-á na vida das instituições dela resultantes.
Só nestas
condições fará sentido afirmar que «o País não será o mesmo», para significar
que teremos uma nova maneira de fazer a política no nosso País. Uma maneira
verdadeiramente nova, aberta à inclusão de todos e à reconciliação entre todos
os moçambicanos.
Por isso, não
bastará, a meu ver apenas consagrar o sistema de lista e do cabeça de lista. É
preciso pôr de lado o critério de que ganha quem tiver maioria absoluta, isto
é, mais de 50%. Um partido, ou grupo de cidadãos, podem ganhar com uma maioria
relativa. A solução não é ir-se a uma segunda volta, num oneroso «tira-teimas»
(imagine-se o cenário, não numa autarquia, mas á extensão de todos os distritos
e autarquias do País) … A solução é negociar uma solução pós-eleitoral que
viabilize a governação. Negociar a coligação a que nos referíamos atrás.
Ao entrarmos
nesta nova fase do processo de descentralização é preciso termos consciência de
que não é um processo instantâneo, que se desencadeia num momento e, logo no
momento seguinte, se chega ao estágio final dessa fase. A questão que é
inevitável abordar é sobre o regime de transição, que é preciso definir,
entre a Revisão da Constituição e a implementação completa de todas as
implicações desta fase da descentralização. Por exemplo, sobre a designação dos
membros do Governo Provincial, entre a situação actual e a que vai prevalecer
com a conclusão da implementação da descentralização a esse nível. Ou, no que
se refere aos distritos, entre a situação actual e a que vai prevalecer em 2024
(ou 2023…). Esta questão é inadiável, deve ser abordada agora e têm que ser
definidos agora os princípios desse regime de transição de forma que, desde já,
a mudança se comece a verificar, e a descentralização não fique vazia de
conteúdo.
Dada a complexidade desta questão é de se considerar a adopção de uma lei de
transição e de gestão da transição, criando-se uma Comissão de Implementação ou
de Monitoria do processo, eventualmente integrada também por personalidades de
fora dos partidos, para se reduzir a margem de manobra ou de controvérsia
partidária.
Então, fazer
descentralização para configurar o País do futuro, não para reproduzir o País
do passado, não para reproduzir indefinidamente as fontes de todas as
conflitualidades que nos dividem e que nos armam uns contra os outros, eis a
dimensão do desafio que a todos se nos coloca.
(Por Teodato
Hunguana , Licenciado em 1972 na Universidade Clássica, Lisboa, Portugal.De
1975 a 1994, exerceu funções governamentais. De 1997 a 2003 exerceu funções
parlamentares. De 2003 a 2009 exerceu funções de magistratura constitucional. Teodato
Hunguana exerce sobretudo nas áreas de lei de investimento, lei administrativa
e direito público)
0 comments:
Enviar um comentário