Jonas
Savimbi era um homem altamente complexo e cheio de contradições.
Gostava muito de livros e da educação, mas matou muitos intelectuais que
divergiram dele. Afirmava ser um lutador pela democracia e pela
economia livre, mas criou escolas para quadros, onde eu próprio me
licenciei, que ensinavam o maoismo. Dizia-se um democrata, mas não
tolerava as críticas. Para alguns angolanos, Savimbi é a encarnação do
diabo; para outros, é um dos líderes mais inteligentes, mais
determinados e mais corajosos que Angola teve até hoje. Qual será,
então, a verdade?
(Nota: Savimbi foi colaborador activo das Forças Armadas portuguesas contra o MPLA no Leste de Angola)
A
vida de Jonas Savimbi pode ser dividida em três fases: o Savimbi da
etapa inicial, o Savimbi da etapa intermédia e o Savimbi da etapa final.
O da etapa inicial foi um produto do sistema colonial português. Nasceu
em 1934 em Munhango, estação da linha de caminho-de-ferro de Benguela,
onde o pai era chefe de estação - na época, um lugar impressionante para
um africano. Savimbi sofreu a humilhação por que passaram muitos negros
angolanos, inteligentes e ambiciosos. Tinha antipatia pelos
«assimilados» e por alguns mulatos que faziam então parte da classe
privilegiada. (Mais tarde, Savimbi iria atenuar a sua hostilidade em
relação aos brancos, criando grandes amizades com alguns deles).
Em
finais dos anos 50 obteve uma bolsa de estudo para Lisboa a fim de
estudar Medicina, mas, depois de muitas perseguições movidas pelas
autoridades portuguesas, fugiu para a Suíça onde estudou Ciências
Políticas. Voltou para África, aderiu à FNLA e tornou-se seu secretário
para os Assuntos Externos. Viajou por todo o mundo e estabeleceu
ligações com muitos nacionalistas africanos incluindo Jomo Kenyata, do
Quénia, e o falecido Felix Houphouêt-Boigny, da Costa do Marfim. Savimbi
foi para a China, onde conheceu o Presidente Mao, e adoptou a revolução
chinesa como modelo. Regressou clandestinamente a Angola e, em Dezembro
de 1966, levou a cabo o primeiro ataque, em Luau, na província do
Moxico. Em 1974, por ocasião da revolução em Lisboa que derrubou o
regime colonial fascista, a UNITA, de Savimbi tornou-se num dos três
movimentos de libertação que competiram entre si pelo apoio dos
angolanos. Os outros dois eram a FNLA e o MPLA. O MPLA seria o vencedor
da guerra civil que se seguiu à partida dos portugueses.
O
Savimbi da etapa intermédia vai de 1975, quando os apoiantes da UNITA
foram forçados a fugir das cidades para o mato, até 1983, quando, com a
ajuda dos americanos e dos sul-africanos, o movimento atingiu o seu
apogeu. O Savimbi da etapa intermédia era carismático, eficiente e amado
pelos seus colaboradores mais próximos.
Sem
Savimbi a UNITA teria desaparecido nessa altura. Savimbi conseguiu,
habilmente, atrair muitos professores, enfermeiros, mecânicos e
burocratas, que vinham das terras altas centrais para o mato a fim de
participarem na administração dos territórios que controlava e que, a
certa altura, abrangiam grande parte do território de Angola. O Savimbi
da etapa intermédia falava em nome dos angolanos pobres que sempre
tinham sido marginalizados.
Milhares
de jovens, especialmente do grupo étnico ovimbundo, viam em Savimbi um
pai adoptivo. Aqui estava, finalmente, um homem que infundia respeito em
alguns círculos internacionais e que também sabia relacionar-se com os
mais humildes camponeses angolanos.
Savimbi
era igualmente eficiente a descobrir e a estimular talentos. As figuras
que estavam nas posições cruciais subiam não através de nepotismo, mas
sim pela sua competência. Se este Savimbi tivesse sido Presidente de
Angola, o país teria tido uma história mais risonha. Contudo, o Savimbi
da etapa intermédia começou a manifestar características que o haviam de
marcar até ao fim da vida matando opositores políticos, por vezes por
razões infundadas. Este Savimbi começou a ver-se como a encarnação da
causa da UNITA e permitiu que um culto da personalidade se desenvolvesse
à sua volta. Os músicos só podiam cantar canções em seu louvor; outros
podiam escrever poemas desde que tivessem uma estrofe de glorificação do
líder. Este culto foi estimulado por informadores ansiosos de estar nas
boas graças do líder. Alguns deles viriam, mais tarde, a passar-se para
o lado governamental.
O
Savimbi da etapa intermédia também começou a abandonar qualquer ideia
de liderança colectiva para o movimento. O destacado secretário para os
Assuntos Externos, Orneias Sangumba, foi morto por ser alegadamente um
agente da CIA. Apesar das ligações estreitas que acabou por estabelecer
com americanos e sul-africanos, Savimbi nutria uma grande desconfiança
em relação à CIA. Nessa altura, o então chefe do Estado Maior, Waldemar
Chindondo, militar distinto que foi um dos primeiros oficiais negros do
Exército português, foi igualmente morto devido a acusações infundadas.
Kashaka Va-kulukuta, anteriormente um colaborador muito próximo de
Savimbi, foi metido numa prisão e acabou por morrer de doença. Segundo a
direcção do movimento - a qual toda a gente tinha de aceitar - figuras
como Sangumba estavam numa qualquer região remota do território
controlado pela UNITA. Mas era uma grande mentira.
A
mentira, especialmente aos órgãos de informação internacionais, era
possível porque Savimbi tinha o controlo completo do movimento. Tudo o
que os seus seguidores faziam devia depender do facto de serem ou não
leais à sua causa. A UNITA não tardou a desenvolver uma intrincada rede
de informadores que reportavam sempre ao líder. Ele sabia tudo - pelo
menos era isso o que as pessoas pensavam.
Em
1990, Savimbi entrou em litígio com Tito Chingunji, o seu secretário
para Assuntos Externos, um homem igualmente brilhante, acusando-o de se
ter tornado demasiado próximo dos americanos. Apesar de todas as suas
qualidades, é difícil perdoar Savimbi pelo modo como se vingou da
família de Chingunji: os outros três irmãos de Tito e os seus filhos
foram executados.
Savimbi devia
pensar que ia ganhar as eleições de 1992 e realizar o sonho da sua vida
de ser Presidente de Angola, e que todos aqueles que ele tinha matado
seriam esquecidos. Mas não foi isso o que aconteceu. A UNITA perdeu as
eleições, disse que os resultados tinham sido fraudulentos e Savimbi e
os seus colegas voltaram a pegar nas armas. Este período, desde 1992 até
à sua morte, marca o Savimbi da etapa final.
O
Savimbi da etapa final nunca se poderia ter adaptado a uma sociedade
digna e com regras. Tratava-se de um Savimbi cuja única motivação era o
poder e o controlo absoluto. Este Savimbi tinha pouco respeito ou
consideração por aqueles que lhe estavam próximos - incluindo as suas
mulheres e amantes. É um segredo por todos conhecido que Savimbi tinha
uma intrincada vida doméstica. Os filhos tinham de lutar entre si para
atrair a atenção paternal. Oficialmente tinha uma mulher, Ana Paulino,
mas também uma série de amantes; estas teriam sortes diversas, tais como
os membros do seu gabinete ou do alto comando. O círculo íntimo de
Savimbi era como uma corte medieval: os cortesãos disputavam entre si
influência e poder (principalmente para serem ouvidos pelo «rei»)
através de intrigas.
O
Savimbi da etapa final também sabia lançar as famílias mais influentes
umas contra as outras, através do seu sistema clientelar. Jonas Savimbi
nunca se interessava pelo dinheiro em si. Isto talvez derivasse da sua
educação de protestante. Contudo, estava mais interessado no poder do
que naquilo que o dinheiro poderia dar a alguém. Um dos fracassos da
UNITA foi o de ser um movimento cujo líder tinha ilusões de vir a
governar um Estado. Ainda me recordo dos tempos em que os líderes da
UNITA diziam que esta tinha tanto dinheiro que dava para envergonhar o
tesouro de muitos países africanos. O próprio Savimbi gabou-se um dia
numa entrevista que havia africanos que vinham ter com ele para lhe
pedirem lições de economia. (Quem recusaria tais lições se, no fim, lhes
era entregue um envelope com alguns diamantes?).
Claro
que ninguém se atrevia a dizer que este tipo de comportamento não era
digno de um líder. (Alguns dos comandantes mais jovens de Savimbi
começaram a imitá-lo e acabaram por ter uma série de mulheres e filhos,
alguns dos quais vivem agora em condições terríveis nos campos de
refugiados na Zâmbia). É chocante como estes jovens comandantes
começaram a imitar Savimbi em todos os aspectos - incluindo o modo como
ele andava, falava ou dançava. Era estranho, por exemplo, ver um grupo
de homens na casa dos vinte anos, todos calçando botas mexicanas iguais
porque era assim que o líder gostava. Também começaram a copiar a sua
inflexibilidade e tendência para personalizar todos os problemas.
É
verdade que, depois de 1992, o Governo angolano tratou mal os apoiantes
da UNITA em Luanda tendo sido assassinadas pessoas inocentes das etnias
ovimbundo e kinkongo, apenas em consequência das suas origens. Contudo,
depois de ambos os lados terem aceite, no acordo de Lusaka, que o
caminho para a frente era a reconciliação, a importância que estava a
ser dada ao estatuto do Dr. Savimbi fez passar para segundo plano o
verdadeiro problema. Houve então momentos em que pareceu que a UNITA
tinha estado no mato unicamente para dar um posto importante a Jonas
Savimbi em Angola.
O
Savimbi da etapa final era impiedoso e estava pronto a sacrificar
centenas de vidas pela sua causa. Savimbi queria, acima de tudo, estar
no comando - e este desejo de um controlo total tinha atingido
proporções patológicas. Era também altamente caprichoso - e, face a
diversos reveses militares, começou a assacar todas as culpas aos seus
comandantes.
Cientes do futuro
que lhes estava reservado, muitos deles acabaram por desertar para as
fileiras do Governo, onde eram devidamente recompensados com postos
aliciantes. Muitas famílias importantes da etnia ovimbundo, a maior de
Angola, confiavam em Savimbi e entregavam-lhe os seus filhos. Por
ocasião da sua morte, muitos destes falaram mal dele. Muitos perceberam
que Savimbi queria implantar um estado totalitário em Angola. Não foi o
Governo angolano enquanto tal que destruiu o falecido líder da UNITA;
Jonas Savimbi foi o pior inimigo de si próprio. Isto explica a estranha
apreensão da elite governamental de Angola na sequência da morte de
Savimbi: agora que o papão nacional desapareceu eles terão de provar do
que são capazes. Por exemplo, será que vão continuar a desviar a riqueza
da nação para contas em bancos estrangeiros, será que vai haver uma
verdadeira democracia nos assuntos do Estado?
Mas
como é que Savimbi, o nacionalista empenhado, se transformou num
potencial ditador africano? Há muitos anos que, como ovimbundo que sou,
me interrogo como foi possível que uma pessoa que eu tanto admirei se
tivesse transformado numa de quem me envergonho de dizer que fui
colaborador.
Ninguém duvida de
que era um homem extremamente inteligente, cuja capacidade de trabalho e
boa memória o colocaram acima dos outros. Trabalhei durante pouco tempo
como tradutor no gabinete de Savimbi - e não hesito em dizer que ele
foi uma das pessoas mais brilhantes que conheci. Foi também muito
corajoso até ao fim. Foi isto, inevitavelmente, que levou muitas pessoas
- especialmente da etnia ovimbundo, a maior de Angola - a segui-lo.
Contudo, ultimamente, muitos ovimbundos começaram a perder a fé nele.
Isto não significa que tenham agora começado a aceitar a cleptocracia de
Luanda - . com as suas passagens de modelos e sumptuosas mansões em
Palm Beach contrastando com tanta miséria. O que acontece é que tinham
seguido um líder com muitos defeitos e que lhes estava a sair demasiado
caro.

Jonas Savimbi tinha
profetizado em diversas ocasiões a sua morte. Num discurso na Jamba,
então o quartel-general da UNITA no leste de Angola, disse que iria
morrer de morte violenta. Em vida, Savimbi já se tinha tornado numa
lenda. Na morte, poderá, para muitos dos seus ardentes apoiantes,
tornar-se no perfeito mártir. Tanto a UNITA como o MPLA têm heróis -
alguns são uma pura criação dos departamentos de propaganda - que
disseram terem posto o interesse colectivo acima dos seus interesses
individuais. No entanto, todos concordam que Savimbi se manteve fiel aos
seus princípios - ou seja, a conquista do poder - até ao último
momento. Não parou de disparar mesmo depois de sete balas se terem
alojado no seu corpo.(Fonte: Expresso)