A recente agitação dos muçulmanos veio mais uma vez mostrar o tipo de Estado que temos e qualidade do nosso debate público.
Até porque já dizia o Professor Elísio Macamo que o desenvolvimento de um país mede-se pelo seu nível de debate. Não precisa fazer inquérito para perceber a tendência das opiniões em relação ao assunto. Mas é preciso analisar a questão baseando-se na lógica dos acontecimentos.
Os muçulmanos cansaram-se de comentar entre eles os raptos seguidos de sequestros dos seus familiares e os consequentes pedidos milionários de resgate. A Polícia, como sempre, prometeu “investigar os casos”. Aliás, inovou: apresentou uns tais que se dizem ser os supostos raptores que tinham treze biliões de meticais que mais tarde já só eram três biliões. Só que os raptos não pararam. A saga continuou e atingimos a casa dos mais de 20 raptos. Não vamos ser hipócritas nem invocar a negritude: estão a ser raptados cidadãos (moçambicanos) de descendência asiática que desenvolvem actividade comercial. Gente tradicionalmente com muito dinheiro.
Perante todo este clima de insegurança, qualquer pessoa normal podia indignar-se e fazer algo (até mesmo por instinto) para convocar a si a segurança a que tem por direito, enquanto cidadão. Foi o que os muçulmanos fizeram. Obviamente que pela sequência dos raptos e pela lentidão no esclarecimento de outros sentiram que a Polícia está inoperante.
Quando se reuniram, os muçulmanos organizados em comunidade ou sociedade decidiram que tinham de fazer algo porque os seus familiares estão a “acabar”. Decidiram exigir segurança. E é aqui onde está o turbilhão que nos faz perder. Os muçulmanos votaram no partido que lhes prometeu segurança e paz, para desenvolverem o que melhor sabem fazer: comércio, o que depois se transformou em contrato social com o Estado. Não vendo a segurança e a paz que outrora lhes foram prometidos, nada de errado fizeram senão exigir: “senhores onde está a segurança que prometeram”? É que no lugar de segurança estão a ser servidos raptos.
Ao exigir segurança, os muçulmanos estão a dizer que se a mesma não se fazer sentir não vamos mais votar nestes que se prontificaram em dirigir o Estado e garantir segurança. Os muçulmanos foram enganados e têm o direito de exigir contas ao enganador. Ora: quer as ameaças de voto, quer ameaças de encerrar as lojas, ou até mesmo de abandonar o país, são direitos constitucionais válidos. Os muçulmanos, assim como outro cidadão moçambicano em pleno gozo dos seus direitos podem o fazer. A quem é que os muçulmanos deviam exigir segurança: certamente que não seria às empresas privadas. Isto não é chantagem, é contrato social.
O problema não está com os muçulmanos. Está com as pessoas que mentiram aos muçulmanos e ao resto dos moçambicanos que, com eles a frente do Estado, a segurança estava garantida. E mais: o problema para mim é quando o Estado começa a ir atrás de votos. Não é essa a função do Estado. Nenhum manual de ciência política faz paralelismo Estado Voto, antes do partido e Governo. O nosso problema é que o partido tornou-se mais importante que o Estado. E quando é assim, qualquer conversa sobre votos, abandonamos o Estado e corremos para lá. O Estado não passa por sufrágio, é entidade permanente.
Os muçulmanos não são culpados quando ninguém protesta quando as nossas irmãs são estupradas quando vão ou regressam da escola. Não são os muçulmanos os culpados quando não nos amotinamos à porta das esquadras para exigir resultados das supostas investigações quando a nossa mãe é violada a ida ou regresso do mercado. Quando os nossos jovens são arrancados viaturas e telemóveis. Não são os muçulmanos os culpados quando atribuímos o certificado de normalidade a atrocidades como estas.
Os muçulmanos não são culpados pela sua organização. As comunidades muçulmanas não foram criadas com o “boom” dos raptos. Existem desde há muito tempo. O Estado aceitou a comunidade muçulmana quando ela se propôs a defender os seus interesses como grupo de cunho religioso, isto há muito tempo. A comunidade nada mais está a fazer que andar atrás dos seus objectivos. Está a ser fiel aos seus ideais.
Ninguém proibiu os cristãos de se indignarem quando párocos eram assassinados. Só que os mecanismos de pressão para a mobilidade policial e o lobby no Estado são diferentes. Não são os muçulmanos os culpados pelos lobbies que os mesmos têm dentro do Estado. São as pessoas que recebem o dinheiro, canetas milionárias entre outros presentes e em troca prometem “tratamento especial”. Aliás, aqui também reside a resposta em relação a milhões de dólares que alguns muçulmanos têm dentro de casa com os quais pagam os fabulosos resgates. Quem instruiu as alfândegas (do Estado) a não scanearem as suas mercadorias e quem autoriza que os mesmos acumulem em casa, tanto dinheiro não declarado? Mais uma vez os que controlam o Estado são os culpados.
Há portanto aqui uma tentativa absurda de levar o debate para o fórum religioso até étnico, mas não é por aí e estamos cientes em que isto pode degenerar. Pessoas organizadas em sociedade (que o Estado deu visto) estão a exigir um direito constitucional. Os muçulmanos não podem ficar calados perante raptos dos seus familiares, só porque são muçulmanos. O facto de serem muçulmanos não lhes retira a nacionalidade moçambicana. Estamos perante uma questão de segurança pública e um grupo organizado decidiu manifestar-se contra ele, exigindo (com seus meios) a resolução.
Tal como diz o professor Mia Couto o argumento da raça ou da tribo é um expediente fácil de usar, pois não precisa de manual de instruções e pode ter efeitos espectaculares. Em vez de se debater ideias, abate-se o outro. A ideia aqui quer me parecer que é linchar publicamente os muçulmanos porque estão a exigir segurança. Não custa nada qualquer um de nós exigir também esta segurança. Podemos até ir pernoitar à porta do Ministério do Interior. Só precisamos de uma coisa: sentirmo-nos inseguros nesta República. Ao invés de vermos a insegurança pública, preferimos ver muçulmanos. É isto que me preocupa.
Os muçulmanos não podem deixar de exigir um direito porque são muçulmanos. Agora não me venham dizer que esses muçulmanos só sabem exigir, porque os seus filhos não vão à tropa nem vão a Matalane para serem polícias. Mais uma vez a culpa não é dos muçulmanos: a culpa é dos que foram negociar o Estado com eles para lhes atribuir tratamento VIP. São os que levam o Estado para o Dia “D” – Dia da Decisão. São os que levam vestimentas religiosas e transformam-nas em uniforme escolar oficial da República em nome de alguns meticais para a campanha eleitoral. São os que em nome do Estado comem tachos oferecidos por eles. São os que confundem o Estado Louco com Estado Laico. Estes são os culpados e os que merecem ser linchados em praça pública. Não os muçulmanos que também são nossos irmãos moçambicanos com todos os direitos e deveres que temos. (M.Guente)
0 comments:
Enviar um comentário