Muitas histórias engraçadas sabem à mentira, mas nem todas as mentiras têm um sabor engraçado. Pudim de cabrito é um prato saboroso, servido a amigos especiais no posto administrativo de Mandie, distrito de Guro, a norte da província de Manica, que tive a ocasião de ser servido e provar com muito gosto, aquando da visita presidencial àquele ponto do país, a qual cobri na qualidade de repórter de imagem.
Foi gratificante ser recebido por gente amiga de coração, pois, durante muitos anos, o tempo e a distância se encarregaram de nos separar. Uma espécie de comportamento humano em extinção, que ainda teima em permanecer como hábito e costume, num mundo tenebroso, onde muitas vezes se nega o bom ao próximo, para atender ao infinito dos caprichos do ser humano, embrulhado na capa da globalização, onde esconde as mágoas criadas e ponderadas pela fragilidade inocente e impotente da avareza selvagem. Apesar da pobreza e do sofrimento criado pela falta de algumas condições materiais, indispensáveis ao Homem em algumas partes de Moçambique, os seus habitantes imbuídos de orgulho próprio, pelo domínio nato de bons hábitos e costumes, sobretudo pelo respeito ao próximo, riqueza moral que vem encravado no peito, de geração para geração, parece não constituir verdade, quando uma simples história engraçada é contada por um viajante de ocasião.
É em Mandie, nas margens do rio Luenha, onde me encontro a lavar os pés, a cara, os dentes e, de vez em quando, com medo do famoso crocodilo, interrompo a tarefa de limpeza ao rosto, mas um amigo de longa data, que se voluntariou a me escoltar, me encoraja a tomar banho, pois estava disposto a guarnecer-me de todos os males que dali pudessem acontecer, conhecia todo o segredo e manias do paquiderme.
Seguro ou não, precisava de um banho, não só pela saudade das águas correntes do rio, simulando a ingénua pureza, mas, porque passara o dia inteiro de viagem num autocarro, que apesar da poeira que penetrava por baixo e da parte da porta, com toda a bravura do seu motorista, o velho Amade, venceu todos os obstáculos campestres, molhando os panos para tapar os buracos que deixavam infiltrar a poeira, até ao destino previsto, entre conversas, anedotas, música e outros comentários sem conteúdo, só para espantar o sono e “encurtar” a distância. Depois da higiene corporal nas pedras do rio, fui convidado a ocupar um assento, debaixo da sombra de uma gigante maçaniqueira, lugar preparado para sacrificar um bode. O bicho encarou-me com um olhar tristonho e trombudo e eu o olhei também com muita pena. Quer dizer, entreolhamo-nos longamente. Parecia que o bode atirasse para mim toda a culpa da sua desgraça, como que falando comigo, frente a frente, ”é por ti que deixo este mundo, todo maravilhoso”.
Embora eu percebesse a tristeza daquele “cabrão”, cabrão sim, tinha os dentes enferrujados, de tanto mastigar folhas e capim, a barba comprida e desajeitada, os testículos carnudos que o incomodavam ao andar, por mais milagres que pudesse inventar, não tinha poder suficiente para mudar o destino daquele pobre animal, cuja sorte foi traçada entre os anciãos locais.
Virei os olhos para o lado do rio, não queria testemunhar aquela acção violenta contra o bode, depois daquele aceno de pedido de socorro, um gesto virtual de despedida que fizera a um estranho viajante, a quem confiara o seu último adeus.
Pouco tempo depois, o bicho estava pendurado na maçaniqueira, todo ele esfolado, bastando para quem quisesse, pegar na navalha e cortar o tamanho do pedaço da sua altura e atirar à brasa, que ardia sem favores, ao som retumbante de batuques e canções, entoadas e dançadas com júbilo do mundo; canções saídas da boca de um povo feliz por dentro, exteriorizando o não medo da liberdade construída pelas suas próprias mãos.
Enquanto o meu pedaço se demorava na fornalha, fui servido um copo fermentado de malambe, mesclado com leite condensado e “cachaça” da primeiríssima, que dava o sabor de um autêntico licor, acompanhado de um brilhante e estranho prato, que não consigo decifrar o seu conteúdo. Quis hesitar em prová-lo, mas o amigo que me acompanhava, encorajou-me a prová-lo.
— Prova amigo, não tenha receio, é tudo festa aqui, é pudim de cabrito, preparado para esta ocasião ímpar – disse sorridente.
— Pudim de cabrito, finalmente! Gostoso. – “Como tem preparado”, pois na cidade, pudim tem sido açucarado, parece que o vosso é salgado — tentei espiar a receita.
Afinal, sempre que se fica perante uma cerimónia especial, é sacrificado um animal, de preferência um bode. O seu sangue é colocado numa bacia com sal grosso, enquanto a navalha lhe atravessa o pescoço. Depois de pendurado num ramo, com a cabeça virada para cima e a parte inferior para baixo, cuidadosamente é lhe retirado a pele e as vísceras. Não precisa de ser lavado, não é por falta de água, pois o rio passa a cinquenta metros, assim tem de ser tratado, como rezam os hábitos, por respeito aos deuses.
E, enquanto o bicho é manejado no arbusto, o sangue coagulado na bacia é posto a ferver com água, sal e outros temperos, transformando-se numa espécie de fígado, e é servido a pessoas especiais. Em relação à carne, cada um corta à sua maneira, mergulhando-a na peneira de sal e temperos, assa-a na brasa viva, preparada previamente para o efeito.
Nos primeiros minutos, a gulosice toma conta dos convidados, que até preferem mastigar a carne antes de cozer, depois nota-se uma acalmia, as pessoas estão empantorradas, cada vez que exercem o seu direito carnivolar, e por fim, parece que ninguém mais se interessa em lidar com aquele esqueleto, baloiçando num arame, entre duas estacas na árvore.
Já com a festa no seu auge, o sol aparece do horizonte e, horas depois, sobrevoam por cima de nós quatro helicópteros, que anunciavam a chegada do Presidente da República, Armando Emílio Guebuza, que vai orientar um comício popular, mesmo ao lado onde os sapadores, na tarde anterior, dedicaram-se a apalpar o chão, de forma a prevenir qualquer desgraça, tendo em conta que Mandie foi área de disputa militar, desde a guerra de libertação nacional até à dos dezasseis anos.
Posto isto, com a panela de pudim de cabrito vazia, ninguém mais se interessou daquele amontoado e apetitoso de carne, e todos fomos aos empurrões ao local do comício, assistir às actividades culturais, onde as mais belas ancas exibiam o seu poderio sensual, os queixos recheados de barba, e receber as devidas orientações do mais alto magistrado do país.
Foi gratificante ser recebido por gente amiga de coração, pois, durante muitos anos, o tempo e a distância se encarregaram de nos separar. Uma espécie de comportamento humano em extinção, que ainda teima em permanecer como hábito e costume, num mundo tenebroso, onde muitas vezes se nega o bom ao próximo, para atender ao infinito dos caprichos do ser humano, embrulhado na capa da globalização, onde esconde as mágoas criadas e ponderadas pela fragilidade inocente e impotente da avareza selvagem. Apesar da pobreza e do sofrimento criado pela falta de algumas condições materiais, indispensáveis ao Homem em algumas partes de Moçambique, os seus habitantes imbuídos de orgulho próprio, pelo domínio nato de bons hábitos e costumes, sobretudo pelo respeito ao próximo, riqueza moral que vem encravado no peito, de geração para geração, parece não constituir verdade, quando uma simples história engraçada é contada por um viajante de ocasião.
É em Mandie, nas margens do rio Luenha, onde me encontro a lavar os pés, a cara, os dentes e, de vez em quando, com medo do famoso crocodilo, interrompo a tarefa de limpeza ao rosto, mas um amigo de longa data, que se voluntariou a me escoltar, me encoraja a tomar banho, pois estava disposto a guarnecer-me de todos os males que dali pudessem acontecer, conhecia todo o segredo e manias do paquiderme.
Seguro ou não, precisava de um banho, não só pela saudade das águas correntes do rio, simulando a ingénua pureza, mas, porque passara o dia inteiro de viagem num autocarro, que apesar da poeira que penetrava por baixo e da parte da porta, com toda a bravura do seu motorista, o velho Amade, venceu todos os obstáculos campestres, molhando os panos para tapar os buracos que deixavam infiltrar a poeira, até ao destino previsto, entre conversas, anedotas, música e outros comentários sem conteúdo, só para espantar o sono e “encurtar” a distância. Depois da higiene corporal nas pedras do rio, fui convidado a ocupar um assento, debaixo da sombra de uma gigante maçaniqueira, lugar preparado para sacrificar um bode. O bicho encarou-me com um olhar tristonho e trombudo e eu o olhei também com muita pena. Quer dizer, entreolhamo-nos longamente. Parecia que o bode atirasse para mim toda a culpa da sua desgraça, como que falando comigo, frente a frente, ”é por ti que deixo este mundo, todo maravilhoso”.
Embora eu percebesse a tristeza daquele “cabrão”, cabrão sim, tinha os dentes enferrujados, de tanto mastigar folhas e capim, a barba comprida e desajeitada, os testículos carnudos que o incomodavam ao andar, por mais milagres que pudesse inventar, não tinha poder suficiente para mudar o destino daquele pobre animal, cuja sorte foi traçada entre os anciãos locais.
Virei os olhos para o lado do rio, não queria testemunhar aquela acção violenta contra o bode, depois daquele aceno de pedido de socorro, um gesto virtual de despedida que fizera a um estranho viajante, a quem confiara o seu último adeus.
Pouco tempo depois, o bicho estava pendurado na maçaniqueira, todo ele esfolado, bastando para quem quisesse, pegar na navalha e cortar o tamanho do pedaço da sua altura e atirar à brasa, que ardia sem favores, ao som retumbante de batuques e canções, entoadas e dançadas com júbilo do mundo; canções saídas da boca de um povo feliz por dentro, exteriorizando o não medo da liberdade construída pelas suas próprias mãos.
Enquanto o meu pedaço se demorava na fornalha, fui servido um copo fermentado de malambe, mesclado com leite condensado e “cachaça” da primeiríssima, que dava o sabor de um autêntico licor, acompanhado de um brilhante e estranho prato, que não consigo decifrar o seu conteúdo. Quis hesitar em prová-lo, mas o amigo que me acompanhava, encorajou-me a prová-lo.
— Prova amigo, não tenha receio, é tudo festa aqui, é pudim de cabrito, preparado para esta ocasião ímpar – disse sorridente.
— Pudim de cabrito, finalmente! Gostoso. – “Como tem preparado”, pois na cidade, pudim tem sido açucarado, parece que o vosso é salgado — tentei espiar a receita.
Afinal, sempre que se fica perante uma cerimónia especial, é sacrificado um animal, de preferência um bode. O seu sangue é colocado numa bacia com sal grosso, enquanto a navalha lhe atravessa o pescoço. Depois de pendurado num ramo, com a cabeça virada para cima e a parte inferior para baixo, cuidadosamente é lhe retirado a pele e as vísceras. Não precisa de ser lavado, não é por falta de água, pois o rio passa a cinquenta metros, assim tem de ser tratado, como rezam os hábitos, por respeito aos deuses.
E, enquanto o bicho é manejado no arbusto, o sangue coagulado na bacia é posto a ferver com água, sal e outros temperos, transformando-se numa espécie de fígado, e é servido a pessoas especiais. Em relação à carne, cada um corta à sua maneira, mergulhando-a na peneira de sal e temperos, assa-a na brasa viva, preparada previamente para o efeito.
Nos primeiros minutos, a gulosice toma conta dos convidados, que até preferem mastigar a carne antes de cozer, depois nota-se uma acalmia, as pessoas estão empantorradas, cada vez que exercem o seu direito carnivolar, e por fim, parece que ninguém mais se interessa em lidar com aquele esqueleto, baloiçando num arame, entre duas estacas na árvore.
Já com a festa no seu auge, o sol aparece do horizonte e, horas depois, sobrevoam por cima de nós quatro helicópteros, que anunciavam a chegada do Presidente da República, Armando Emílio Guebuza, que vai orientar um comício popular, mesmo ao lado onde os sapadores, na tarde anterior, dedicaram-se a apalpar o chão, de forma a prevenir qualquer desgraça, tendo em conta que Mandie foi área de disputa militar, desde a guerra de libertação nacional até à dos dezasseis anos.
Posto isto, com a panela de pudim de cabrito vazia, ninguém mais se interessou daquele amontoado e apetitoso de carne, e todos fomos aos empurrões ao local do comício, assistir às actividades culturais, onde as mais belas ancas exibiam o seu poderio sensual, os queixos recheados de barba, e receber as devidas orientações do mais alto magistrado do país.
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