Excitado com o lançamento dum empreendimento que pode vir a fazer de Gaza a Singapura de Moçambique, fui consultar o Plano de Desenvolvimento Estratégico de Gaza para 2018-2027. Segundo ele, “em 2027, Gaza será uma província próspera e sustentável, livre da pobreza extrema e da fome”. A visão estratégica é de “promover os recursos endógenos de Gaza através da transformação da cadeia de valor agrária”. O plano foi elaborado por alguns daqueles que nos ajudam a morrer, portanto, os nossos “parceiros de cooperação” (PNUD, cooperação belga, sueca, etc.). É um documento arrepiante pelos seus lugares-comum e que nos países donde veio o dinheiro para a sua elaboração seria rasgado aos pedacinhos.
Mas esse é outro assunto.
O
que reparei nesse documento é que não se faz nenhuma menção ao aeroporto. Os
tais 60 milhões que esta infra-estrutura custou são muitos para uma província
como aquela. Tanta infusão de “mola” tinha que ter sido considerada na
elaboração dum plano estratégico. Teriam escrito, “em 2021, as crianças de Gaza
vão gritar de alegria por ver um avião a pousar em Chongoene, os seus pais
estarão livres da pobreza extrema e da fome”. Mas nada. No prefácio, a
Governadora, na altura, Stella da Graça Magalhães Pinto Novo Zeca, saúda em
primeiro lugar o Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, pela sua visão
e sábia liderança do País e do nosso povo, por tudo quanto foi alcançado e pela
transformação do plano num instrumento de desenvolvimento. Já está explicado
porque esta infra-estrutura tem que ter o seu nome.
Só que não.
O
hábito dos tempos gloriosos de dar nomes dos Presidentes a infra-estruturas
nunca foi bom e eu já me pronunciei várias vezes sobre isto. Entra em choque
com o espírito democrático e, pior, colide com a necessidade de fazer da
deliberação no seio da governação um instrumento eficaz. Numa altura em que
decorre um julgamento onde bôdes expiatórios são sacrificados para proteger a
cultura das “orientações superiores”, tresanda inaugurar um aeroporto cuja
viabilidade económica é altamente duvidosa com o nome do Presidente da
República. Isso significa, no mínimo, que o Presidente continua rodeado de
pessoas que estão mais preocupadas em o agradar do que em trabalhar em boa
consciência para o bem da comunidade. Eu acredito que a ideia não foi dele, mas
o facto de ele não a ter rejeitado diz tudo sobre a sua perplexidade e sobre
porque com ele este País está entregue.
Agora,
há uma maneira de evitar o debate sobre a racionalidade deste empreendimento e
sobre a qualidade da nossa liderança.
Mas
o argumento tribal é mau por outras razões.
Primeiro,
não há comparação possível entre Mondlane, Machel, Chissano e Guebuza, por um
lado, e Nyusi, por outro. E não é porque uns são do Sul e o outro é de Cabo
Delgado. Haveria comparação entre os primeiros e Chipande, Pachinuapa, etc.
Fazem parte duma geração de ouro (mesmo com as devidas reticências), cuja vida
e obra se confunde com o devir deste País. Atribuir os seus nomes a
infra-estruturas (ainda que, por uma questão de princípio, eu esteja contra)
não me parece tão grave quanto fazer o mesmo com um Presidente de outra
geração. Ele simplesmente não tem o peso histórico que os outros têm. E devia
ser do seu interesse proteger-se do ridículo procurando introduzir outras
maneiras de fazer as coisas, algo que ele tem grandes dificuldades em fazer e,
infelizmente, não parece ter o devido apoio.
Segundo,
achar que quem é de Gaza e se opõe é porque não gosta do Norte é simplesmente
fantástico.
Nas
últimas eleições, Gaza deu 94% do seu voto a Nyusi, contra 75% da sua província
natal. O pessoal de Cabo Delgado que não votou em Nyusi é tribalista também? Em
Gaza, ele teve melhor desempenho do que o seu próprio partido, mas mesmo aí, a
Frelimo em Gaza teve mais 20% do que obteve em Cabo Delgado. Não interessa, por
enquanto, se alguém andou a encher as urnas. O que interessa é que se as
pessoas de Gaza tivessem um problema tribal, nunca teriam votado em massa por
alguém de fora da sua província. Até correram com os adversários à paulada em
cenas vergonhosas de perseguição de pessoas de Gaza que aderiram a outros
partidos.
Terceiro,
o argumento tribal é típico da nossa colonização mental.
Os
europeus meteram na nossa cabeça que é um problema sentir obrigações morais por
quem nos é mais próximo. Pegam nisso para explicar porque andamos aos murros
uns com os outros. Eles próprios são muito mais tribais do que nós. Quando
fecham as fronteiras para protegerem os seus dos vírus que eles acham que nós
estamos a transportar, eles estão a mostrar que sentem obrigações morais mais
fortes pelos que lhes são próximos. Como estrangeiro aqui na Europa, para eu
ter emprego é preciso que quem me emprega mostre que não existe candidato
nacional ou europeu melhor qualificado do que eu. É tribalismo isso. Mas lá em
África, andamos aí com a cabeça cheia da ideia de que é mau ser tribalista.
Pois bem, não é.
Precisamos duma outra abordagem deste assunto para que a nossa
própria perplexidade não seja a razão de conflitos “tribais”. Há uma distinção
feita pelo filósofo David Miller que me parece útil. Ele distingue entre uma
moral negativa e outra positiva. A negativa é a que me impede de fazer o mal a
quem não pertence à minha malta. O importante aí é o respeito pela dignidade
humana dum modo geral. Como pessoa do Sul não devo andar nas ruas de Maputo a
insultar gente do Norte, nem mesmo recusar alugar casa a alguém por não ser do Sul.
A moral positiva é que me obriga a respeitar as minhas obrigações para com os
membros da minha família, da minha terra, da minha região, da minha igreja, do
meu clube de futebol, do meu partido, da minha profissão, etc. A moral positiva
é que forma comunidade. O importante não é, portanto, combatê-la, mas sim criar
condições para que ela evolua dentro da observação da moral negativa. Esta, na
verdade, serve sempre como um correctivo.
Há
gente em Moz que é do mesmo partido, da mesma igreja, do Real Madrid, fã de
Cristiano Ronaldo, do Benfica, bebe junta, trai junta, rouba do erário público
junta, odeia os homossexuais com os mesmos níveis de obsessão, detesta a
Frelimo, a Renamo ou o MDM, tem sempre algum problema com os Tugas, etc., mas
acha que ser do Sul, Norte ou Centro é um defeito de carácter. Parece-me
infantil e, até certo ponto, imbecil.
Mas conforme dizia mais acima, onde não há cultura de debate – e a Frelimo é cada vez mais o exemplo disso – haverá sempre gente apostada em encontrar razões para impedir que as pessoas façam interpelações críticas. O argumento tribal, fruto da nossa colonização mental, continua a ser um dos maiores. E funciona com os menos seguros de si próprios que vão calar o bico para não serem acusados de tribalismo.
Comigo não funciona.
O nosso País está a ser mal governado. Não é porque o líder seja do Norte. É porque ele revelou não reunir as qualidades necessárias. Não duvido que haja gente de Cabo Delgado mais capaz do que ele. Mas mesmo essas pessoas, sem a ajuda do seu partido, nunca conseguiriam suprir eventuais lacunas. A prova das insuficiências deste é deixar que quem o devia aconselhar melhor atribua o seu nome a um empreendimento de racionalidade económica duvidosa. Uma pessoa que no seu discurso inaugural anunciou que o povo era o seu patrão devia se sentir mal rodeado de pessoas que procuram mostrar que ele não estava a ser sério quando disse isso.
Se
fosse coerente, teria recusado e sugerido que o aeroporto se chamasse “Povo”.
Pelo menos isso.
N.b.
Fiz duas correções. Tinha esquecido de incluir "Machel" na lista dos
ilustres e corrigi a data do Plano. (Prof. Elísio Macamo in facebook)
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