Huntington, um cientista político americano referiu, após a II Guerra Mundial, que as futuras guerras, seriam, fundamentalmente, motivadas por “choques de civilizações”, numa perspectiva de afirmação de identidades culturais e religiosas e contra a hegemonização tendente à uniformização desses factores no contexto da globalização económica e cultural. Huntington rejeitava que as ideologias, os interesses políticos, económicos e geoestratégicos, e qua as bordagens marxistas de classes sociais, fossem os elementos fundamentais dos conflitos posteriores à segunda guerra. Foi muito criticado.
O autor deste texto está em conformidade com as críticas. Porém, não reduz a zero que também possam existir, no conflito de cabo Delgado, factores culturais e religiosos, isto é, que elementos que suportam a teoria de Huntington sejam totalmente desprezíveis. Existem muitas pesquisas, textos e comentários sobre o conflito/guerra de Cabo Delgado. Uma parte, dá enfâse aos factores internos, como, por exemplo: (1) pobreza, desigualdades sociais, etnolinguísticas e de género; (2) acesso aos órgãos do poder local e central e a recursos; (3) negócios em crise; (4) tráficos de pedras preciosas, madeira, marfim, entre outras, e as relações de agentes internos com circuitos internacionais; (5) falta de oportunidades de trabalho e de pequenos negócios para a juventude.
A crise económica, política e das instituições, não são só ou principalmente, como oficialmente se fundamenta, consequência da crise e dos mercados internacionais, da COVID-19, ou de conflitos “externos”. Existem opções de política económica e de políticas públicas erradas e erráticas, factores estruturais de longa duração, instituições ineficientes, pouco transparentes e a corrupção tornou-se sistémica. Alega-se que, nestes contextos, existem condições internas para a emergência de um ou vários conflitos violentos, instabilidade social que, a prazo, com ou sem gás, se despoletariam em Cabo Delgado ou em outras partes de Moçambique. Outros, defendem que a guerra é motivada pela existência de recursos naturais e as geoestratégias à escala global, como, por exemplo: (1) reduzir a possibilidade de alterações nos actuais (des)equilíbrios do mercado energético, com a entrada de grandes quantidades de gás, eventualmente, reforçando a posição de algumas multinacionais e países, além de eventuais efeitos sobre os preços, mesmo considerando as desvantagens do gás, comparativamente com o petróleo; (2) vantagem de médio/longo prazo, em termos ambientais, do gás em relação ao petróleo; (3) controlo das rotas do Índico pelos Estados Unidos da América e de França, não somente para controlo de tráficos de droga e outros recursos naturais, migrações clandestinas e pirataria marítima, como ainda pelo controlo militar e económico da zona; (3) dificultar a “penetração” chinesa (principalmente) e indiana em África, que têm por estratégia, deslocalizar indústrias intensivas em mão-de-obra produtora de bens para demandas de baixo rendimento, com salários baixos e terra barata, maior proximidade dos grandes mercados, como ainda, para “exportar” a emissão de gases contaminantes do ambiente devido às tecnologias dessas indústrias, numa perspectiva de especialização desses países no mercado de tecnologias de última geração e a transformação/especialização nas “novas economias”.
O Governo diz ser um inimigo sem rosto e, por isso, sem possibilidade de negociação para o caminho da paz. Mas, afinal, pensa-se que interessa aos líderes deste tipo de conflito e actuação militar/actos de terror, serem conhecidos ou a organização possui formalização transparente para o efeito? É estratégia deles negociar neste momento? Embora o Estado Islâmico tenha uma estrutura interna e linhas de comando, pode-se admitir que, pelo menos parte das suas células, actuam descentralizadamente, com decisões e táticas locais. Os militantes actuam guiados por uma ideologia, com raízes ou ramificações do islamismo radical. A guerra de Cabo Delgado não é parte da guerra, designada por “santa”? Se assim for, então, pode-se induzir que será, também, uma guerra anti-Estado, no quadro de uma luta contra os “infiéis”, e, portanto, pode ter uma ideologia e filosofia civilizacional, como foram as cruzadas e a missão “civilizadora” colonial.
Na realidade, os factores internos e externos reforçam-se mutuamente. O terrorismo radical actua em países/zonas onde existem estados falhados ou frágeis, pobreza, grandes desigualdades sociais e espaciais, elites corruptas e juventudes sem perspectivas de vida. Moçambique possui estas características que facilitam a presença deste tipo de instabilidade. O governo de Moçambique não tem sabido lidar com o conflito. Primeiro, foi negligente, pois sabia-se, pelo menos desde 2012, que existiam sinais que poderiam desembocar em conflito; depois, procurou esconder ou minimizar a importância dos acontecimentos; a seguir, foi evidente da incapacidade do exército de suster a guerra; seguiu-se a retórica de recusa de apoio militar externo, quando, simultaneamente, actuavam mercenários; falou-se em apoios externos não letais; e, finalmente, entram forças estrangeiras. E a pergunta será: certamente que os serviços de segurança sabiam do que se passava desde o início, seja por acção directa, como através de informações de outras agências de segurança; por que não se actuou? Será porque a guerra de Cabo Delgado inclui interesses económicos das elites internas, a nível local e nacional e, destas, com o exterior? A guerra de Cabo Delgado facilita os tráficos de droga e de recursos naturais (pedras preciosas, madeira, etc.)? Ou, no princípio, estava-se mais preocupado com Afonso Dlakhama? Será que os serviços de segurança, num Estado de partido dominante, servem plenamente o país? Ou será que está ao serviço de um Estado partidarizado que se tornou numa plataforma de acesso e distribuição de poder e de negócios?
As hierarquias islâmicas internas, distanciam-se, certamente de forma genuína, do radicalismo e das acções armadas. Por outro lado, o grupo que pratica a guerra revela ser não alinhada ou é mesmo contra as hierarquias islâmicas em Moçambique. A igreja católica condena e assume posicionamento de apoio às vítimas das acções dos alshababes. As igrejas são milenares e milenarmente têm as suas estratégias e, neste sentido, pode-se estar em presença de disputa de espaços e influência, aliando-se necessariamente aos poderes do Estado. Nesta perspectiva, não haverá o que se designa como as continuidades de muito longa duração, de restauração dos domínios árabes no mundo e no caso concreto do califado de Zanzibar e da influência em toda a costa africana do Índico? Muitas das pesquisas sobre este conflito têm enfatizado os factores internos. Existem condições locais que, perante acções comandadas, com objectivos exteriores e supranacionais de longo prazo e com motivações económicas e de poder (e, eventualmente de influência religiosa actual e de longo prazo), se reforçam e se aproveitam mutuamente. Por outro lado, há muitos comentaristas, geralmente bem informados, que enfatizam diferentes factores, geralmente assentes no dualismo interno/externo.
Colocar a questão civilizacional pode parecer estranho e polémico, num mundo que se diz de construção da paz e de entendimentos diversos, de globalização económica e de aproximação de civilizações, aspectos estes que também são manipulados por mais poder e dinheiro. Mas que os factores culturais e religiosos são questões de reflexão, lá isso parece não haver dúvidas. Assim sendo, rejeitar a colocação dos aspectos civilizacionais nas hipóteses e metodologias de pesquisa também parece ser não académico. Estas são algumas das questões que os pesquisadores poderiam explorar, sem tabus, nem preconceitos. Pelos assuntos que se tratam, não é fácil a equipes de pesquisa isoladas, conseguirem material que fundamente, ou não, estas hipóteses de trabalho. É necessário unir funcionalmente grupos de pesquisa, especializá-los, o que, por razões diversas (económicas, políticas e ideológicas), não será fácil. Se assim não for, as pesquisas procurarão aprofundar temas que, embora importantes, podem não explicar plenamente a realidade, motivações e estratégias de longo prazo. Há muitas questões por responder. As colocadas neste texto, são apenas algumas delas. (Joao Mosca)
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