quinta-feira, outubro 17, 2013

Mortes maternas equivale ao despenho de Boeing 747

“A FAMÍLIA só ficou a saber que a rapariga havia interrompido a gravidez quando ela estava já a morrer. Quando a levaram ao hospital descobriram que o útero estava danificado e a infecção já tinha invadido os outros órgãos vitais do seu organismo”.Foi neste cenário sinistro que Ricardo João, estudante, descreveu a forma como uma menina, sua vizinha de 18 anos, perdeu a vida devido ao aborto feito fora do hospital e por uma pessoa não qualificada.Esta jovem mulher, que residia na cidade de Maputo, não é a única que morreu devido ao aborto inseguro no nosso país e no mundo. A Organização Mundial da Saúde estima que, em cada um minuto, uma mulher perde a vida, a nível mundial, devido a complicações relacionadas à  gravidez ou ao parto, o equivalente a cerca de 1.600 óbitos por dia.Em Moçambique, mais de 400 mulheres perdem a vida por 100 mil nascimentos vivos. Desses óbitos, 11 por cento estão ligados ao aborto feito fora do hospital. Estes são dados conhecidos, prevendo-se a ocorrência de mortes fora da unidade sanitária que não são registadas no sistema de saúde.  “O número de mortes maternas equivale ao despenho de quatro em quatro horas de uma aeronave Boeing 747 (um dos maiores do mundo). Quando o avião despenha o assunto é falado por todos, é notícia na imprensa. Mas, esta tragédia silenciosa (aborto inseguro) que acontece diariamente, não se fala”, observa Nafissa Osmar, médica gineco-obstetra e presidente da Associação Moçambicana de Obstetras e Ginecologistas (AMOG).Nafissa Osmar falava há dias num fórum onde se reflectia sobre como intensificar a campanha “Por uma lei que descriminaliza a interrupção voluntária da gravidez”, actividade realizada, em Maputo, à margem das comemorações do Dia Global de Acção para o Acesso ao Aborto Seguro e Legal, assinalado a 28 de Setembro. O debate foi organizado pela Rede de Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos.

A Lei moçambicana proíbe a prática do aborto. Contudo, as mulheres não deixam de fazê-lo. “Não há nenhuma Lei que conseguiu impedir que as mulheres não façam o aborto”, refere Nafissa Osmar. Por falta de alternativas, quando se vêem numa gravidez indesejada, as mulheres abortam às escondidas e em condições deploráveis, usando métodos que colocam em risco as suas vidas.As que não morrem ficam com sequelas graves, algumas por toda a vida devido ao tipo de instrumento ou meio que usam para abortar. Há aquelas que ingerem ervas, lixívia, gasolina, pólvora e café. Outras introduzem nos órgãos genitais, instrumentos e raízes, folhas de plantas e medicamentos tais como o permanganato de potássio.Em 2012, só a cidade de Maputo registou mais de mil admissões de mulheres com complicações devido ao aborto inseguro. Do total, dez perderam a vida devido a sepsia e dois por hemorragias. Estes dados excluem o Hospital Central de Maputo (HCM), o maior do país.Devido à gravidade das lesões, algumas mulheres lhes são tiradas o útero, outras ficam sem possibilidade de voltar a engravidar o que aumenta a sua discriminação na sociedade por não conseguirem conceber, explica a socióloga Maria José Arthur.As principais vítimas de aborto inseguro são mulheres de todas as idades, sobretudo raparigas, e com poucos rendimentos, residentes, na sua maioria, em zonas rurais e, com desconhecimento do uso de contraceptivos modernos, uma vez que as que têm mais meios podem ter acesso aos serviços de aborto seguro em clínicas privadas e com todas as condições, fez notar Nafissa Osmar. “Não estamos a favor do aborto. O ideal seria que todas as mulheres conseguissem prevenir a gravidez indesejada. Mas a nossa realidade é outra. As mulheres estão a morrer e temos que fazer algo para evitar essas mortes”, aponta a gineco-obstetra, Nafissa Osmar.  Em 1989, o Dr. Pascoal Mocumbi, na altura ministro da Saúde, aprovou um regulamento interno que autorizou a prestação de serviços de interrupção da gravidez, a pedido das mulheres que assim o desejassem, o que contribuiu para salvar vidas. Contudo, esta norma não está a ser respeitada em todas as unidades sanitárias do país porque não vai de acordo com o que está no Código Penal.“Há directores de hospitais que são sensíveis à questão da morte de mulheres e permitem a interrupção voluntária da gravidez no hospital, mas há outros que não, por questões pessoais, religiosos e morais”, aponta Maria José Arthur.

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