quinta-feira, abril 25, 2013

“Viver africano para viver livre e digno”


Para o Burkina Faso, Thomas Sankara foi mais do que um presidente. Assassinado em 1987, o seu túmulo continua a ser meta de peregrinações para multidões de admiradores. Todos os anos, a 15 de Outubro, uma grande multidão encaminha-se para a periferia oriental de Ouagadougou. Cidadãos da capital, mas também gente vinda do Mali, do Gana, da Costa do Marfim e de muitos outros países da África ocidental. A meta é um simples paralelepípedo de cimento, tosco, com uma lista negra onde se lê: «Capitaine Thomas Sankara Président du Faso.» O mínimo que Blaise Compaoré, o actual Presidente do Burkina Faso, pudesse fazer pelo homem que abriu uma das raras esperanças à África de hoje. O homem que, treze anos depois da sua morte, atrai todos os anos, no aniversário do seu assassínio, multidões de fiéis, que repetem: «Sankara permanece sempre entre nós.» Chamam-no Sankara e não Thomas; não pelo nome, como é costume entre os habitantes do Burkina em relação aos presidentes, porque Sankara não foi apenas um presidente.Jovem, belo, com a grande força expressiva dos mestiços, este filho de mãe mossi e de pai peul tornou-se rapidamente um espinho no pé da França e de muitos outros líderes africanos. Sankara era da segunda geração, filho daqueles numerosos «pais da pátria», enredados em independências fictícias, caindo em terríveis contradições políticas e patéticas retóricas pan-africanistas.Mas há algo de diferente nos burkinenses em relação aos habitantes dos países limítrofes: exactamente o sentimento de serem burkinenses. Uma consciência nacional rara em África, um orgulho convicto, embora cientes de viverem num país paupérrimo. Para isso contribuiu muito a experiência de Sankara. Este jovem capitão, que tomou o Poder com apenas 35 anos através de um golpe de Estado sem derramamento de sangue, não teve tempo de resolver os inúmeros problemas do seu país e talvez nem o conseguisse, mas seguramente abateu aquela incómoda capa de frustração e desestima que oprimia e oprime muitos africanos, por se julgarem inferiores ao homem branco.
«Eu venho trazer-vos a saudação fraterna de um país com 274 mil quilómetros quadrados de superfície, onde sete milhões de crianças, de mulheres e de homens se recusam agora a morrer de ignorância, de fome e de sede», assim se exprimia Sankara a 4 de Outubro de 1984 diante da Assembleia Geral das Nações Unidas, consciente de que representava uma terra que «é incontestavelmente um dos poucos países deste planeta onde se concentram todos os males naturais que a humanidade ainda conhece neste fim do século XX», mas que, ao mesmo tempo, reivindicava o orgulho de fazer parte «daquela plêiade desprezada, o Terceiro Mundo, que outros mundos inventaram. Nós queremos fazer parte dele, mas recusamo-nos a justificar esta gigantesca burla da História. Ainda menos a aceitar ser o “ventre” de um Ocidente glutão».
Entre as muitas inovações promovidas por Sankara conta-se o novo figurino da carta administrativa do país, fazendo coincidir os limites territoriais administrativos com as fronteiras étnicas, restituindo à população, pelo menos em parte, aqueles pontos de referência típicos da sua tradição. Com uma ingenuidade por vezes desarmante, Sankara teve o mérito de lançar um desafio. Mérito que temos de reconhecer, num continente onde a maioria dos esforços foram gastos na cópia de uma ocidentalização e de um desenvolvimento importado.
A sua voz ainda grita nas paredes da cidade: «Consommons burkinabe» («Consumamos produtos burkinenses») ainda se pode ler nas inscrições já quase lavadas pelas chuvas. Hoje a fábrica de têxteis Faso dan Faso fechou as portas. Já ninguém compra aquela farda imposta aos funcionários públicos e que os cidadãos também eram convidados a usar para dar trabalho aos camponeses do país.
«Não há dia em que não falemos nele», disse-me um dia um homem de meia-idade em Ouagadougou. «Viamo-lo frequentemente a andar de bicicleta, nas ruas. Um dia, teve um furo e foi a uma oficina mandá-lo arranjar. O dono não o reconheceu. Quando terminou o trabalho, o Presidente perguntou-lhe quanto era.
«500 francos CFA.»
«É muito caro. Dou-te 200 e já vais com sorte.»
«Caro? É que, com Sankara, encareceu tudo», respondeu-lhe o dono da oficina.
«Achas que sim?», perguntou-lhe o Presidente divertido, enquanto as pessoas que o reconheceram se juntavam à roda deles para ver como tudo iria acabar.
«É tudo muito difícil com Sankara, temos de trabalhar muito mais», respondeu. E prosseguiu: «Sankara é duro, mas faz-nos sentir orgulhosos. Vai-se ao Togo, ao Benim, ao Mali, mas nada se compara ao orgulho de sermos burkinenses. Estamos orgulhosos, sim!»
Estive no Togo, no Benim, no Mali, no Gana e todos confirmam as palavras do dono da oficina e recordam-se de Sankara como de uma esperança. Encontra-se a sua imagem, aquele rosto irónico e sisudo, belo como o dos mestiços, meio peul e meio mossi, pintado nos camiões da Nigéria, do Gana, nos autocolantes, nas t-shirts, nas paredes.
Uma noite, projectava-se um documentário sobre Sankara na Maison du Peuple de Ouagadougou. A sala estava a abarrotar de gente. Os militares controlavam as entradas, com as metralhadoras aperradas. O documentário começou a ser projectado com grande atraso. Imagens com pouca qualidade, mal montadas, por vezes a fita partia-se. Mas quando aparecia o rosto do capitão, a multidão explodia em aplausos. Era impossível compreender o que dizia, a ovação não parava. Até os militares abandonaram aquele ar carrancudo e bateram palmas com os outros quando os olhos de Sankara, sentado ao lado do impassível Mitterrand, se abriam enormemente, com ar incrédulo, diante das perguntas dos jornalistas franceses.
O Governo de Sankara durou apenas três anos, de 1984 a 1987. Poucos, muito poucos para aquela planície de esperança, pouco favorecida pelos deuses, que é o Burkina Faso. Muitos, muitos para aqueles camponeses do Sahel que viram ser construída uma escola e um dispensário em quase todas as aldeias e puderam começar a comer duas refeições por dia. Sankara foi uma gota de água naquele mar de desolação que é a África dos nossos dias. Talvez seja verdade, como afirmou Sennen Andiamirado, jornalista daJeune Afrique, que ele morreu cedo de mais para evitar que cometesse erros. Mas não jovem de mais para se tornar um sinal de esperança.

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