quarta-feira, junho 20, 2012

500 Anos como besta

“Nós não somos o que gostaríamos de ser.Nós não somos o que ainda iremos ser.Mas, graças a Deus,
Não somos mais quem nós éramos”, Martin Luther King
 Quando li esta eloquente frase do lendário herói norte-americano Martin Luther King, caí na tentação de modificar a palavra Deus, por Frelimo na terceira estrofe, para que, para nós moçambicanos, passe a ter a seguinte formulação: Nós não somos ainda o que gostaríamos de ser. Nós não somos o que ainda iremos ser. Mas, graças à Frelimo, Não somos mais quem nós éramos.
 É inegável que o nosso presente é de longe bem melhor que o nosso passado, como bem o disse o Presidente Guebuza durante o comício que na última quinta-feira marcou o fim da sua presidência aberta à cidade de Maputo e, seguramente, que o nosso futuro será ainda bem melhor, como ele bem  o antevê e anteviram antes dele Samora, quando repetidamente dizia cantando “Hitachura Moçambique”, e Joaquim Chissano, quando replicava em plena guerra de desestabilização, que iríamos ter um dia “Um futuro Melhor”.  Hoje, 20 anos após o fim dessa guerra diabólica, vivemos dias melhores, apesar da grave crise que afecta mesmo os países que ontem tinham leite e mel para vender e dar a pobres ou vitimas das guerras como a nós. O nosso país faz parte do grupinho de dez países de um total de cerca de 200 que perfazem o mundo, que nos últimos dez anos registam um crescimento rápido de entre 7 e 10 por cento.
  É certo que para os mais novos, mormente os que nasceram um pouco antes ou depois do resgate da nossa independência, podem ser erradamente induzidos ou persuadidos a acreditar que estamos pior agora que no tempo colonial. Esses, até  podem não compreender porque é que caí na tentação de mudar a palavra Deus por Frelimo. Não é tanto porque seja discípulo de Voltaire que questionou, no seu Dicionário Filosófico, a força que se atribuiu a Deus, mas assim optei para deixar mais do que claro, que para os que passaram pelas agruras e trágica noite coloniais, encaram a Frelimo pelo menos como tendo encarnado Deus  ou se tornado no seu outro Deus da Terra, porque de facto nos resgatou de um sistema tão diabólico quanto hediondo, de tal modo que os seus mentores não podem sequer servir como estrume depois de morrerem.
 É verdade que ainda não somos o que gostaríamos de ser, como ainda não somos o que ainda iremos ser, mas é um facto inegável, a qualquer luz, que o que a Frelimo fez por nós ao longo destes 50 anos da sua vida cuja exaltação tem marcado este ano e que terá o seu apogeu a 25 deste mês, faz com que já não sejamos mais quem nós éramos.
 De facto, o nosso presente é bem melhor que todo o nosso passado, e os que tentam nos incutir a ideia de que no tempo colonial estávamos melhor, é o mesmo que se dizer que os sul-africanos de cor estavam melhor no tempo do apartheid em que lhes era negado o direito de cidadania e quando eram impedidos de entrar nos mesmos lugares  em que estavam os seus compatriotas de raça branca.
Já que pode ter razão o lendário músico brasileiro Lindomar Castilho, quando diz numa das suas músicas que “a memória do povo esquece rapidamente”, acho imperioso fazer aqui uma descrição do que foi esse passado  negro que durou 500 tenebrosos anos de sofrimento comum, e que só a Frelimo veio pôr o seu fim definitivo. Vou descrever esse passado, porque acredito na tese de Cicero, de que “quem não se vale do passado, morre criança”. Porque não falamos desse passado, hoje é comum ouvir pessoas dizerem que o tempo passado era melhor que o presente. Não é por acaso que o escritor angolano José de Agualusa diz que um povo desprovido da sua história, é um rebanho fácil de dominar. Por isso, o Simpósio da Frelimo que decorreu sexta-feira e sábado últimos na Matola, foi sem dúvida vital para o refrescamento da nossa história sobre como era a brutalidade do colonialismo e como se erradicou. Para os mais novos, foi uma verdadeira revelação.
Afinal o que éramos mesmo no passado? Confesso que não há palavras que descrevam com exactidão o que éramos. Numa palavra, éramos tratados como bestas para carga. Não éramos nada, porque não nos era permitido sequer ser ou termos nada que fosse nosso, uma vez que nos era negado tudo, mas tudo mesmo. É por isso que Mandela diz que independência é termos o direito do que antes nos negavam. Não tínhamos, por exemplo,  o direito à existência como povo, como não nos era permitido o direito à educação, saúde, à propriedade e mesmo ao trabalho assalariado condigno e muito menos com remuneração que fosse na base do princípio que reza que para trabalho igual, salário igual.
 Na altura, aos trabalhadores de cor pagava-se deliberadamente tão baixo, porque se alegava que o negro come capim e por isso  não precisa de dinheiro para se alimentar. Como bem nos recordava Samora,   tratavam-nos pior que os seus cães, de tal modo que preferiam viajar com eles na cabine dos seus carros e nós na bagageira. Isto pode soar a exagero, mas é o que fizeram aos nossos antepassados e os mais velhos que ainda estão vivos podem testemunhar isso, como o fizeram os nossos libertadores quando falaram no Simpósio da Frelimo. Aliás, mesmo que a cabine não estivesse cheia, transportavam-nos sempre na bagageira porque para eles nós éramos piores que os seus animais de  estimação. Lembro-me do meu avô contar que houve um administrador colonial em Zavala que dizia que “no dia em que um avião fosse viajar nele um negro, devia se queimar logo no fim dessa viagem”. 
  Basta dizer que nessa altura, só havia escolas do Estado nas cidades e vilas onde os moçambicanos de raça negra não eram permitidas viver, enquanto  nas zonas rurais em que viviam, quando muito havia escolas rudimentares dos missionários católicos, feitas de caniço ou outros materiais perecíveis, onde apenas se lhes devia ensinar a ler e contar, ou alguns ofícios básicos como carpintaria, serralharia ou agricultura, tudo para que os que lá estudassem, pudessem ser, quando fossem adultos, bons servos dos seus patrões coloniais.  
  Ao invés de hoje em que em apenas 37 anos de independência se (re)construíram já dezenas de escolas de todos os níveis e especialidades em todo o país, no tempo  colonial as que havia se contavam aos dedos de uma só mão e, mesmo assim, quase todas estavam vedadas aos moçambicanos de raça negra, e apenas havia uma única universidade na então cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo), contra as mais de 42 com que contamos agora.
De facto, já não somos mais o que éramos, mesmo tendo em conta que temos muitas crianças ainda que estudam debaixo das árvores ou que se sentam no chão por falta de carteiras. Essas crianças são evidência viva de que ainda não somos de facto o que gostaríamos de ser, mas mesmo assim, provam também que já não somos o que éramos, porque pelo menos têm o direito de estudar, não obstante o façam em condições não muito condignas. É diferente do tempo colonial, em que havia crianças que eram discriminadas e que lhes era negado o direito de estudar só e apenas porque eram de cor negra ou de outra raça que não a branca.
Uma das evidências que para mim provou que a Frelimo era de facto o povo em si, foram as manifestações populares que a 7 de Setembro de 1974 acabaram esmagando a tentativa dos colonos se oporem à consumação dos Acordos de Lusaka, entre o Governo português e a Frelimo. A forma tão espontânea e heróica com que os habitantes de Maputo se fizeram às ruas e se bateram e morreram baleados ou mesmo atropelados deliberadamente pelos colonos que tentavam parar o vento revolucionário pelas mãos, no dizer de Samora então,” foi uma prova inegável de que a Frelimo se havia encarnado já no povo em si, e não um simples movimento rebelde”. A Frelimo havia conseguido, citando agora Mao Tse Tung,  “fazer do povo sua água”,  como se de peixe fosse.
 Aquela manifestação popular em prol da independência foi uma espécie de chegada física antecipada da Frelimo, para não dizer que era a Frelimo feita povo. Não terá sido por acaso que surgiram slogans do tipo “Frelimo é o povo e o povo é a Frelimo”. Praticamente todos os moçambicanos eram frelimos de carne, osso e alma  que tinham na palavra Frelimo o rótulo com que se podiam identificar. Na verdade, é esta característica pouco comum na vida de partidos políticos, que faz com que a Frelimo seja hoje um dos poucos partidos africanos que sobrevive de entre os mais de 50 que lideraram as intendências dos seus respectivos países. Sobrevive porque a Frelimo conseguiu tornar-se de facto num movimento de massas, graças às suas políticas libertárias e de defesa constante dos interesses dos que eram rejeitados pelo então sistema colonial.
É um dos poucos partidos sobreviventes, porque depois da independência, a maioria dos seus líderes, repito e vinco, a maioria e não todos os seus líderes, não se deixaram cair no sabor do poder em que caíram muitos outros pais das independências africanas e não só, e que fez com que se esquecessem, no dizer de Eduardo Mondlane, da sua missão sagrada – que é esboçar políticas e soluções que concorram para a resolução dos múltiplos problemas da maioria ou já agora do povo, e trabalhar sempre em prol do bem-estar comum e não apenas deles próprios como líderes.
  Vinquei a maioria porque é um facto inegável e visível a todas as luzes, que à medida que a Frelimo vai se tornando mais velha e mais expansiva, alguns dos seus dirigentes, especialmente os mais novos, têm dado evidências de ter mais vontade de comer sós que a de trabalhar e sacrificar-se pelo bem da maioria ou do povo, o que pode levar este grande e glorioso partido a definhar e morrer, tal como morrerem vários outros que haviam ganho a glória,  por terem liderado a libertação dos seus países e povos do jugo colonial e racista. Há que ter em conta o alerta feito por Francis Fanon, de que nem sempre a gloria do passado pode nos manter vivos e muito menos fortes e vencedores. Há que somar novas glórias às velhas para que a glória passada se mantenham válida, e seja sustentadora da continuidade. Creio que é o que a Frelimo tem estado a tentar fazer, ao declarar a fome e a pobreza como os novos inimigos do povo a que se deve combater e vencer. É um facto que caso a Frelimo liderar com sucesso a derrota destes dois inimigos tão velhos quanto o próprio povo, e cuja erradicação havia sido interrompida pela colonização que não permitia o nosso desenvolvimento, serão novas glórias que se somarão às velhas.
 Para que não definha e morra de vez, deve haver coragem para se refinar e lubrificar ainda mais a sua máquina, e se faça a purificação das suas fileiras, de modo a se livrar de alguns dos que se infiltraram no seu seio com a intenção de encherem as suas contas bancárias. Digo isto porque a purificação de fileiras foi sempre uma constante na Frelimo desde a sua fundação e ao longo da luta armada de libertação nacional, e é mesmo por ter adoptado esta pratica, que se desfez sempre de todo o jóio que a podia ter sufocado e morrer também.   Não pode haver hesitações, porque é um facto que nem todos os que se filiam à Frelimo o fazem com boas intenções. Fazem-no não para  servir o povo como o proclamam. Há os que se filiam movidos pela gula e vontade de  se valerem deste partido como instrumento de enriquecimento rápido, como bem alertou há décadas o lendário Francis Fanon no seu famoso livro “Os Condenados da Terra”.
É imperioso que se expurguem os oportunistas, se é que a Frelimo quer que seja  cada vez mais preferida pela maioria. Os elevados absentismos nos pleitos eleitorais têm sido um grande alerta e prova de que há que se refinar a máquina política, para que a política volte a ser ópio do povo, tal como o futebol que atrai milhares aos estádios para verem bons jogadores jogar. Para dizer a verdade, no dia em que as equipas de futebol passarem a ter muitos mais jogadores como na política onde há cada vez maus políticos, teremos também estádios menos cheios ou mesmo vazios, tal como agora em que há cada vez menos pessoas que vão aos comícios ver políticos pregarem política, ou cada vez menos pessoas votarem nas eleições. E isto já é um problema mundial, como se viu  agora na França,  Grécia, Egipto e Guiné-Bissau, só para mencionar alguns, em que teve de se ir à segunda volta para se apurar os vencedores dos pleitos eleitorais. Isto é muito mau e mostra que as pessoas ou o eleitorado estão a perder fé nos partidos políticos.(GM)

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