domingo, novembro 21, 2010

M E T I C A L

O jornalista Carlos Cardoso tinha em suas mãos três armas poderosas, que usava contra os corruptos, os inimigos da jovem, frágil democracia de Moçambique, os obscuros líderes do crime organizado e usurpadores em geral: Um raro faro investigativo, uma escrita ferina e directa e um jornal. Foi com esses três ingredientes que ele fez de seu diário-fax um dos mais respeitados de toda a África descobrindo e denunciando crimes, escândalos e falcatruas. Cardoso tornara-se a voz dos que não a tinham. Estas armas contudo iriam se mostrar inofensivas contra as utilizadas por seus inimigos. No dia 22 de Novembro de 2000 ele deixou as dependências de seu jornal Metical pouco antes das dezanove horas, após fechar a edição do dia seguinte. Era uma quarta-feira em Maputo . Esta época do ano é propícia a chuvas nesta região do continente africano, mas o dia havia sido ensolarado e o calor dava lugar agora a um pouco da brisa morna e húmida, vinda da baía . Antes de deixar as dependências do Metical, Carlos Cardoso avisou Carlos Manjate, seu motorista, para ir buscar o carro e esperá-lo.Devia ser 18:30 h, quando Cardoso entrou no lado esquerdo, ao lado do seu motorista, do Toyota Corolla modelo 1999, com a placa MLN-0-04 de propriedade do jornal. O automóvel seguiu pela Avenida Mártires da Machava, centro da cidade, que passa ao lado do conhecido Parque dos Continuadores. Neste momento o Toyota de Carlos Cardoso é fechado por dois outros veículos, um de igual marca e outro, provavelmente um VW. O veículo da frente freia repentinamente, obrigando o motorista Manjate a parar bruscamente às margens da calçada. Cardoso abraçara o jornalismo em 1975, o mesmo ano que Moçambique, com a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) liderando, alcançava sua independência. Ele iniciara a carreira na revista "Tempo", passara pela Rádio Moçambique, pela Agência de Notícias de Moçambique e, em 1992, fundou com colegas a Mediacoop (Cooperativa de Jornalistas), na qual trabalhou até criar o seu "Metical" em 1996. Foi como editor do mesmo que alcançou a plenitude que almejava, denunciando violações de direitos humanos, violência policial, aumento abusivo de salários dos parlamentares, casos de corrupção como o da Alfândega e dos Serviços Florestais e contra as injustiças sociais. Casos que, após denunciados por ele, eram irremediavelmente comprovados. Sequer poupava críticas à própria Frelimo que tanto apoiara na luta pela libertação dos colonizadores, e a quem acusava de possuir "alas gangsterizadas". Por último ele começara a levantar o véu que pairava sobre o desaparecimento de 100 milhões de dólares do Banco Central de Moçambique bem como a investigar a atuação do crime organizado no tráfico de pedras preciosas, drogas e armas em alguns Estados africanos. Os inimigos eram com isso cada vez mais poderosos. E perigosos. Ao frear subitamente o automóvel, Cardoso e seu motorista devem ter percebido que se tratava de uma emboscada. Descendo do automóvel da frente, dois homens, armados de metralhadoras, avançaram pela calçada e descarregaram suas armas em rajadas que mataram instantaneamente o jornalista e feriram gravemente o motorista Carlos Manjate. Uma cena digna de Chicago dos anos 30, em plena passagem para o século XXI. Tombava ali não apenas um combativo jornalista, mas também conceitos e pressupostos sobre o que há de verdade e de falso, quando se fala de países do terceiro mundo que tenham alcançado condições ou status de plena democracia, liberdade de imprensa, liberdades democráticas. Menos o acto delictuoso em si, violência e mortes estão presentes em qualquer sociedade, porém a certeza de cometer um crime, de assassinar um jornalista e não ter que pagar por isso, derruba um dos principais fundamentos de um estado democrático.

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