segunda-feira, dezembro 03, 2012

Socorram a Guiné!

“Vamos fazer guerra. Eu com a minha caneta, eles com catanas e armas”
Saiu de Bissau depois de receber ameaças de morte. Exilado em Lisboa, António Aly Silva não se sente seguro e vê-se obrigado a recomeçar do zero. Uma das mais ouvidas vozes guineenses no mundo, numa entrevista sem assuntos proibidos.
O que é que te levou a sair de Guiné-Bissau?
A perseguição constante, que se acentuou no dia 26, e que me fez sair nessa mesma noite para Dakar e depois para Lisboa.
Especulou-se sobre o que tinha acontecido e como tinhas entrado no Senegal. Se estarias mesmo em Dakar.

Na entrevista que dei ao Informador [ntpinto.wordpress.com] apareceu alguém a dizer que era mentira, que eu não podia ter saído no mesmo dia e que não havia voos à noite.
O que eles queriam era raptar-me em Dakar, mas não tiveram luz verde do governo senegalês que lhes disse claramente que eles não podiam de maneira nenhuma prender-me porque eu não fiz nada no Senegal. O perigo do nosso país advém das mentiras, das calúnias, que acabam por tomar contornos que depois não conseguimos controlar.
As ameaças que recebeste e que te levaram a sair de Bissau têm necessariamente a ver com a tua actividade jornalística, nomeadamente aquela que desenvolves no teu blogue?
De jornalista e cidadão. Porque enquanto cidadão guineense não apoio golpes, não quero saber de golpes. Aliás, quando fui preso no dia 13 de Abril os militares fizeram-me uma proposta indecente que era para eu ficar a trabalhar com eles. Eu disse que não queria. A partir dessa altura começaram a olhar-me de outra maneira, com ódio. Telefonavam, ameaçavam. Queriam parar o blogue, mas não pararam. Vamos fazer guerra, eu com a minha caneta, eles com catanas e armas.
Mas chegaste a ponderar parar com o blogue…

Tenho dois filhos e não quero que os meus filhos cresçam a pensar que o pai foi assassinado.
Depois daquele patético mandato obviamente que eu não posso parar. Não posso e não vou parar. Só vou parar no dia em que morrer. E se eu morrer o meu blogue no dia a seguir continua, tudo está do meu lado. Se querem parar o meu blogue não é matando-me que vão conseguir.
Já tinhas sido preso anteriormente, já tinhas sido ameaçado noutras alturas.
Eu comecei a ser preso desde 92, na época de Nino Vieira. Pertencia ao PCD, fui preso, espancado, tive que ser evacuado para Portugal para tratamento. Tenho o corpo todo marcado, mas porquê? Porque sou jornalista. Se nós todos na Guiné tivéssemos armas, quem é que levantava uma arma para dar um tiro à noite e sobressaltar as famílias? Ninguém. Os militares ficaram chateados quando eu pus um post a dizer que não havia etnia mais “matcho” que outra etnia na Guiné. E não há. Há uma etnia que se sobrepõe às outras porque usa o método de terror, espancamentos e assassinatos e isso põe medo em qualquer pessoa, mas se todos nós tivéssemos armas, ninguém levantava uma arma para fazer o que quer que fosse, porque lhes caíamos todos em cima. Isso é que as pessoas têm de entender.
No teu entender a mudança de paradigma na Guiné-Bissau terá necessariamente que partir da vontade dos guineenses?
Tem que partir do sacrifício dos guineenses. Os militares estão a espezinhar os direitos humanos na Guiné-Bissau e a CEDEAO tem que reagir. Onde é que está o poder efectivo e de facto da ONU? O que é que a ONU faz? Nada. Agora, outro disparate: mandaram militares para ir morrer no Mali. Por cada militar morto ou ferido no Mali vai haver uma queixa-crime contra as autoridades ilegítimas e golpistas da Guiné-Bissau, porque o Parlamento não aprovou nada. Os povos dos países pobres são deixados a morrer e os dos países ricos são salvos. Isto não pode ser. A carta das Nações Unidas é clara. A igualdade é para todos.
Quem é que vai apresentar essa queixa-crime a que tu referes?
Eu mesmo, porque sou cidadão da Guiné-Bissau. Mesmo estando fora do país pode-se fazer, há tribunais internacionais, já escrevi isso até no blogue. Cada cidadão ferido ou morto vale uma queixa-crime contra as autoridades que estão na Guiné-Bissau ilegalmente, que usurparam o poder a começar pelo senhor Kumba Yalá que é aquele que de facto manda naquele país hoje. Isso é insustentável.
No teu entender é Kumba Yalá quem está por detrás dessas movimentações políticas e militares?
Com certeza. O Kumba Yalá é que deu o Golpe, é que manda, que põe. O Kumba Yalá é que manda na Guiné-Bissau, nomeou quase tudo o que é ministros, secretários de Estado, directores gerais. Ninguém tem dúvida disso.
Acreditas que o país irá a eleições no próximo ano?
Eu não sei em que acreditar mais, sinceramente. Só sei que a Guiné-Bissau está de joelhos, quase a cair e se as Nações Unidas não aprovam uma força de interposição de 4 mil ou 5 mil homens para aquele país, estão a hipotecar o futuro de um milhão e meio de guineenses. E alguém terá que responsabilizar as Nações Unidas pelo futuro daquele povo. As Nações Unidas são obrigadas a dar um sinal claro. Foi um disparate do Governo de transição ir à ONU e não chegar sequer a pisar o passeio. Isso é uma prova clara do abandono a que a Guiné-Bissau está votada. Portanto, é preciso que a ONU, o mais cedo possível, trate com a União Africana, com a CPLP, com a União Europeia. Na Guiné, as pessoas são raptadas, espancadas, assassinadas debaixo do nariz das tropas da CEDEAO. Estão lá a fazer o quê? Uma missão que gasta mais de 20 milhões de dólares por mês o que é que faz na Guiné-Bissau? Protege quem? Quem é que nos protege a nós das barbaridades que estão a ser cometidas pelos militares na Guiné-Bissau? Porque já vimos que a CEDEAO não o faz.
Todos estes meses passados não se alterou significativamente o quadro, como acabaste de descrever. No teu entender, porque é que as coisas simplesmente não acontecem?
Não acontecem porque há gente mesquinha a fazer política no nosso continente. Pela primeira vez na história da Guiné-Bissau houve um golpe em Abril, estamos em Novembro e a Guiné ainda não é reconhecida pela União Europeia, não é reconhecida pela CPLP, está suspensa da União Africana e não é reconhecida pela esmagadora maioria dos países da Nações Unidas. Passaram muitos meses e então pergunto, porque é que a ONU ainda não se decidiu pelo envio de uma força multinacional para a Guiné-Bissau. Estou farto de falar na possibilidade do envio de uma força e da Guiné tornar-se um protectorado da ONU. Só assim vamos deixar de passar a imagem de animais que temos perante o mundo e só assim a Guiné-Bissau caminhará com calma e sem sobressaltos para se desenvolver. Na Guiné-Bissau a tropa faz o que lhe apetece, trafica, troca, tem pista de aviação em quase todo o território, protege os traficantes, lança os foguetes, apanha as canas. Mas quem é que vota em alguém para ser chefe de estado-maior? Ninguém.
Achas que pode estar eminente um novo golpe de Estado?
Isso é só somar um mais um. Já escrevi isso uma vez e repito. Se me querem acusar de fomentar incitamento à guerra étnica, só lhes digo uma coisa: disparate, vocês estão a aterrorizar o povo da Guiné porque é que não podemos aterrorizar-vos? Estou em Portugal, mas é como se estivesse em Bissau, não estou seguro, eu sei que não.
Não te sentes seguro em Lisboa?
Não. Nunca. Estou aqui, é como se estivesse na cidade em Bissau, eu sei isso. Não frequento dezenas de sítios porque entendo que não devo fazê-lo. Eles estão a aterrorizar o povo e quando eu disse uma vez a que atitude do Quem é mais do que quem? Quem tem o direito de raptar e matar? Eu não vou raptar ninguém, claro, nunca o fiz, nunca conspirei para nada disso, mas gostava que os guineenses fizessem isso. Que o cidadão comum fizesse isso, porque não, eles têm familiares a estudar fora da Guiné. É apanhá-los numa esquina e levarem duas chapadas, qual é o problema?
Na Guiné-Bissau, os guineenses tem percepção de tudo aquilo que se está a passar ou a informação é sonegada de maneira a que as pessoas não percebam a real dimensão da situação?
A informação não é sonegada, basta ver o meu blogue. Até o secretário-geral da ONU consulta o meu blogue que eu sei.Agora, o guineense está aterrorizado a ponto de não ousar se¬quer piscar o olho. Temos gente à civil em tudo o que é esquinas a ouvir, a comunicar, a mentir. Delatores. Estamos a viver uma ditadura militar na Guiné-Bissau, sobre isso não há dúvidas. Temos lá um representante da União Africana, não sei que relatório é que manda para a União Africana, não me parece que sejam relatórios da real situação porque senão já havia quem tivesse agido. Não estou a duvidar das intenções do representante da União Africana, eu gostava de saber que tipo de informações são passadas para a União Africana.
Como é que é a tua vida actualmente em Lisboa? Deixaste tudo em Bissau?
Vim com uma mochila. A minha vida aqui é uma porcaria autêntica. Estou aqui, tenho que recomeçar do zero, não tenho trabalho, não tenho casa. Para mim isto é um inferno e se calhar antes do fim do ano regresso ao meu país, e se me quiserem matar, façam favor.Eu não posso viver aqui da maneira que estou a viver. Estou aqui ao Deus dará, sentado numa casa que não é minha. Isto não é vida, eu tenho 46 anos, sou Guineense, gostava de continuar a viver no meu país e morrer lá e ser enterrado lá. Esse é o meu desejo. Agora, nem no meu país eu posso viver porque eu critico os desmandos, os crimes que acontecem contra o meu próprio povo. Estou farto de andar a fugir, não gosto desta vida.

Expresso das Ilhas/Entrevista por
Nuno Andrade Ferreira

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