quinta-feira, junho 09, 2016

Lava jato à moçambicana?

Jorge Rebelo, um dos fundadores da Frelimo, onde foi o temido secretário do Trabalho Ideológico nos tempos de Samora Machel, lamenta o facto de o país ter sido levado para a sarjeta por um líder consagrado como visionário.

Após vários anos consecutivos de crescimento forte, o desempenho económico de Moçambique está a registar sinais de queda nos últimos tempos. Como é
que encara esta triste realidade?
É o resultado de uma sucessão de vicissitudes. Crise na produção de alimentos. O próprio governo queixa-se de que estamos a consumir muito mais do que produzimos. Importamos quase tudo o que comemos. Mesmo produtos alimentares básicos como batata, cebola, tomate, apesar de termos tanta terra fértil. Isto é resultado de políticas erradas que não priorizavam a agricultura e a indústria ao longo de décadas. Hoje assistimos a uma espécie de acto de contrição de ex-dirigentes. Mas na prática ainda não se nota um esforço para mudar, para restituir agricultura e à indústria o devido lugar. E, assim, a tão proclamada luta contra a pobreza regrediu, a pobreza aumentou e o povo sofre as consequências das nossas falhas na governação. Mas muitos outros factores contribuíram e contribuem para a queda da nossa economia. Podemos falar da seca e das inundações que constantemente nos atingem, sem que se tomem as medidas possíveis para pelo menos mitigar estas calamidades previsíveis. Embora seja justo dizer que quando o El Nino se zanga não é possível aplacá-lo.

Há quem diga que a actual crise resulta, em parte, da actuação pouco criteriosa do governo cessante...
Tal como disse antes, estamos a passar por uma sucessão de crises. Estamos a assistir uma
situação em que o nosso metical está em derrapagem face ao dólar, os preços de carvão e gás baixaram muito no mercado internacional, vivemos uma situação de instabilidade e insegurança (conflito armado). Porém, de outro lado verificamos um cenário de ganância da classe política que conduz à corrupção (alguém definiu a corrupção como um imposto pago pelos pobres). A criminalidade galopante que faz fugir os investidores e agrava a instabilidade, a diminuição drástica da ajuda externa como sanção contra o endividamento ilícito do país.

E como sair desta...
São tantos factores. Mas porque são muitos, é necessário definir quais os prioritários e sobre os quais o governo deve fazer incidir a sua acção. Penso que neste momento são o conflito armado e a instabilidade que ele gera; e a dívida oculta não transparente que, além do mais, nos privou do apoio dos doadores e organismos internacionais, com consequências que já estamos a sentir. E que vão agravar-se muito nos próximos tempos.

Ainda na linha dos endividamentos. Uma das coisas que está a agitar o país nos últimos anos são os créditos contraídos por “empresas privadas”, mas com garantias do Estado. Como vê esse fardo que o Estado está a ser obrigado a suportar?
Vejo como uma maldição, mas não castigo de Deus. É um mal que alguém de entre nós criou.
Pode dizer-se: justifica-se esta dívida astronómica porque esperávamos colher os frutos do carvão, do gás e do petróleo, o que não aconteceu. Mas um dirigente tem de saber fazer previsões e avaliações correctas da realidade. Além disso, há uma forte suspeita de que grande parte desses valores foram parar nos bolsos de alguém. É necessário uma investigação.

Diz parte dos valores que endividaram o país foram parar no bolso de alguém. Quem é?
Todos o conhecem.

Resultado de imagem para jorge rebeloO jornal Canal de Moçambique Moçambique noticiou, recentemente, que uma empresa ligada ao filho do presidente Guebuza intermediou a compra de armas para o Estado. O que acha disso?
Também li essa notícia, que acrescenta que as comissões deste jovem empresário foram de 11 milhões de dólares. Pode ser uma fabricação, por isso só me posso pronunciar quando estiver provado. De qualquer forma, a notícia não me surpreendeu. Os filhos dos Presidentes (e de grande parte da nomenklatura, e não só aqui) têm uma aptidão especial para enriquecerem sem trabalhar, graças à influência dos pais. É a aplicação de uma antiga teoria: vale mais o dinheiro ficar connosco, em família, do que ir para os bolsos dos outros. Como dizem os músicos: “é assim na terra do pandza”.

Na contracção das dívidas há quem diga que se violou a Constituição e que há espaço para a responsabilização criminal. Comunga o mesmo espírito?
Claro que sim. Não pela pressão da comunidade internacional, que é grande, mas para fazemos valer o princípio de que ninguém está acima da lei.

Será que a justiça moçambicana tem capacidade e/ou coragem para investigar e tomar medidas sobre a situação das dívidas?
Se não tem, os que dirigem as instituições da justiça deverão demitir-se e dar lugar a outros menos comprometidos com o poder, menos medrosos e mais íntegros, como o juiz que ilibou o Dr Castelo Branco, apesar da pressão em contrário da Procuradoria Geral da República. Temos quadros válidos neste sector.

Algumas figuras históricas da Frelimo defendem uma espécie de Lava Jato à moçambicana. Qual é a opinião do Jorge Rebelo?
Isso equivaleria a uma verdadeira revolução. Estamos preparados para a desencadear? Neste momento crítico não iria agravar a instabilidade? No Brasil essa operação levou à prisão de muitos altos dirigentes, alguns deles condenados a 15 ou mais anos de cadeia. Aqui iria acontecer o mesmo, se a operação fosse levada a sério. Bastava uma investigação sobre a origem da riqueza dos chefes. Pessoalmente, acho que se justifica, porque a dita estabilidade que vivemos é falsa, é aparente. Se a medida da estabilidade é o grau de satisfação da população, podemos dizer que ela é praticamente inexistente.

Tendo em conta a situação de insustentabilidade económica em que o país se encontra, que futuro vaticina?
Não é preciso ser um vidente para prever um futuro muito sombrio para os moçambicanos, principalmente os mais pobres. Mesmo os pequenos e grandes empresários estão já a ressentir-se da queda nos negócios e redução dos investimentos. Mas nós já passámos por crises graves na história recente de Moçambique. E conseguimos superar. Embora nenhuma com a dimensão que esta tem.


(SAVANA por Raul Senda)

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