Sempre com ideias próprias e distante de
paradigmas, Elísio Macamo apresenta a sua visão sobre o país.
Não vê problemas na descentralização proposta
pela Renamo e diz que não faz sentido que os governadores provinciais sejam
nomeados pelo Presidente.Disse ao jornal Público, de Portugal, em 2013,
que Moçambique é uma construção muito frágil. “É como um castelo de cartas que
pode ruir, no mínimo num sopro. Qualquer grupo de pessoas com vontade e com
meios pode inviabilizar um país como Moçambique”. O que falta ao nosso processo
institucional e democrático para que sejamos um país sólido, onde não haja esse
risco de desagregação?
Qual é esse contexto?
Só para dar um exemplo, talvez um pouco
polémico, nós estamos a formar os nossos Estados num momento em que a definição
de Estado inclui dar votos a toda a gente, independentemente do seu estatuto
social, educacional e qualquer outra coisa. Não estou a dizer que isso seja má
coisa, mas estou a dizer que quando os europeus criaram seus Estados, não o
fizeram nessas circunstâncias. Esse é um exemplo. O outro é que nós estamos a
formar Estados num contexto em que nós temos que respeitar direitos humanos.
Não estou a dizer que os direitos humanos não sejam importantes, mas o que
estou a dizer é que, tendo que respeitar todas estas coisas que os europeus não
tiveram que observar na altura que estavam a formar os seus Estados. Portanto,
é um contexto completamente diferente e é natural que a gente tenha problemas.
O modelo que nós estamos a construir, por
aquilo que está a dizer, é um modelo importado, mas estamos a importar de
países que já ultrapassaram determinadas fases. Existe um outro caminho que não
seja esse?
Uma das coisas que sempre defendeu é que
considerou uma possibilidade de guerra irreal. Defendeu que poderia haver
distúrbios, mas a guerra não. Mas a ameaça em si de guerra já é em si a guerra,
na medida em que tem efeitos psicológicos, tem efeitos ao nível da economia, da
circulação das pessoas e das expectativas das pessoas…
Aí estamos a entrar numa questão semântica e é
um pouco complicado, porque é uma questão de sensibilidade política. Por
exemplo, há pessoas que têm interesse em descrever a situação em que estamos
como uma situação de guerra. É um interesse político, mas também pode ser ético
para chamar atenção das pessoas para a gravidade da situação. Eu não diria que
nós estamos em guerra, e também não acho que venha haver guerra em Moçambique,
mas pode haver uma certa instabilidade. Pode haver uma situação tensa
militarmente durante muito tempo, porque simplesmente nós vivemos num Estado
que não é suficientemente sólido para suster esse tipo de golpes.
Uma vez escreveu que a “Renamo se nutriu de
problemas reais criados pelo totalitarismo da Frelimo, nos anos a seguir à
independência”. E diz ainda que a Frelimo não é o que muitos de nós em
Moçambique pensamos que é. O nosso país vive uma situação de instabilidade, de
alguma forma influenciada pela Frelimo e pela Renamo. O que é a Renamo, o que é
a Frelimo, do ponto de vista sociológico?
E é esta falta de cultura política que acaba
de descrever que influencia a falta de resultados no diálogo político que nós
temos hoje?
Bom, eu acho que influencia. Porque em grande
medida o que está a ser negociado lá é justamente esta prerrogativa de poder. É
verdade que algumas das reivindicações que são feitas pela Renamo fazem
sentido, uma vez que o nosso, e qualquer sistema político podia ser melhor. Por
exemplo as irregularidades nos pleitos eleitorais, a partidarização do Estado,
o facto de haver mais privilégios para quem está no poder em relação a quem
está fora são problemas que têm de ser abordados. Então eu acho que em certa
medida está-se a negociar de facto o poder, e ao mesmo tempo essa negociação
está a ser feita sob o pano de fundo de questões que são reais. Quero
aproveitar a oportunidade para dizer que acho que seria importante abrir o
diálogo para todos os moçambicanos. O novo governo tem a prerrogativa de dizer
“vamos tentar um outro caminho”. E para mim, esse outro caminho não passa por
continuarem fechados no Centro de Conferências Joaquim Chissano, mas por abrir
este debate ao MDM, à sociedade civil, e a todos outros actores sociais.
Precisa-se criar uma conferência nacional para se pensar neste país de novo.
Há cerca de quatro anos que o Governo e Renamo
decidiram sentar para dialogar, mas vemos que não há entendimento e não se
consegue desbloquear os impasses. Defendeu a necessidade de envolvimento de
toda a comunidade moçambicana, no sentido de discutir a agenda nacional. Mas a
questão de fundo é como é que se constrói esse caminho?
Mas o actual Presidente logo que chegou ao
poder reuniu-se com o líder da Renamo, do MDM, com as várias igrejas e chegou
até a fazer uma conferência para discutir a paz e a violência. Não será um
sinal de um caminho que este Presidente está a tentar mostrar no sentido de
reconciliar a família moçambicana?
No primeiro painel do MOZEFO discutiu-se a
questão da humanização do crescimento. Na ocasião defendia-se a necessidade de
um pacto social sobre os principais temas do país, e a criação de instituições
que fossem capazes de conservar a memória institucional e conduzir a um
processo de desenvolvimento. Qual é a sua opinião em relação a estes dois
pontos?
Eu não sou muito amigo desse tipo de
terminologia “pacto social”, “instituições fortes” e posso explicar porquê. Em
vários pontos do país onde as pessoas vivem em comunidade não fizeram nenhum
pacto social, e vivem bem umas com as outras, e resolvem os problemas quando se
desentendem. Tudo o que um país precisa para viver bem é de uma Constituição
que é respeitada. Portanto, para mim o melhor pacto social é a Constituição. É
ela que estabelece as regras de jogo, e é isso que nós precisamos. Quando as
regras de jogo não são respeitadas entra a ética e a moral. Também não sou
muito amigo da agenda 2025, tanto que na altura que foi feita critiquei.
Mas então como é que identificamos os nossos
objectivos a curto, médio, e longo prazo?
Não temos objectivos em comum. O problema está
aí de pensar que nós temos objectivos em comum. Nós somos um acidente histórico
e geográfico. Encontramo-nos por acaso e temos que partilhar este espaço, e não
precisamos de ter um objectivo comum. O único objectivo comum que nós
precisamos de ter é de não resolver os nossos problemas indo a garganta um, do
outro e criar espaço para que cada um de nós defina o seu objectivo e o
alcance.
Mas a falta dessa visão comum sobre os
objectivos que nós queremos não é essa razão que despoleta os desentendimentos?
Não, não é. É o egoísmo, a prerrogativa do
poder que algumas pessoas têm, e a ganância. É toda uma série de coisas menos a
falta de objectivos comuns. A ideia do objectivo comum para mim só faz sentido
quando ela é entendida como regras do jogo. E é a Constituição que faz isso. Eu
tenho ouvido muita gente a falar disso, mas para mim esse é um pensamento
extremamente nocivo para a vida em democracia. Cada um de nós tem as suas
aspirações. Até pode aparecer um partido político dizendo que devemos apostar
nos objectivos comuns. Mas não pode dizer que só assim o país será viável.
Eu não acho que a pré-condição para o
bem-estar, e seja lá o que isso for, seja a existência de instituições fortes.
As instituições fortes são muitas vezes o resultado do desenvolvimento. Aquilo
que a gente vê nos Estados mais avançados, é justamente isso. Eles não criaram
instituições fortes e depois desenvolveram-se. As instituições ao longo do
tempo, por si só ficam mais sólidas. Mas há uma grande guerra que a gente tem
que fazer todos os dias para que essas instituições fiquem cada vez mais
fortes. Mas nós temos muito essa mania de usar palavras que pensam por nós.
Então nós não interpelamos o significado dessas palavras e depois temos dificuldades
em perceber o que está a correr mal no nosso país, porque há muitas palavras
que nos descrevem um mundo fácil de alcançar. Mas essas coisas não são fáceis
de alcançar.
Os objectivos de desenvolvimento do milénio
foram substituídos pelos objectivos de desenvolvimento sustentável. Como é que
vê o projecto desta nova agenda global, embora já seja possível prever o que
vai dizer tendo em conta que o que disse anteriormente?
O professor Severino Ngoenha defende que é
preciso reforçar o sentido de pertença. Aliás, esse foi um tema muito levantado
aqui no MOZEFO. E é recorrente este discurso de autoestima, de dizer que os
moçambicanos durante o início dos anos da independência tinham este sentido de
pátria, mas hoje já não existe. Afinal de contas, o que quer dizer sentido de
pertença?
Eu acho que ele tem razão. Nós precisamos sim
de sentido de pertença, porque isso é muito importante. Lembro que no primeiro
dia do MOZEFO falou-se que havia um maior sentido de pátria, mas eu não
concordo com isso. Houve um projecto político que tinha uma ideia muito clara
do que é a pátria moçambicana, e essa ideia do que é a pátria moçambicana
criou-nos muitos problemas porque era muito excludente. É preciso ter em conta
que o processo de construção do país tem vários níveis. Há um nível que é o do
Estado, e há um nível que é da sociedade. Então, o Estado é a prerrogativa que
alguém tem de monopolizar os meios de violência. Refiro-me à violência de dizer
“eu estou a dar ordens para você dizer isso aí”. Olhando para a história do
processo de construção de Estado na Europa, notamos que a construção foi,
primeiro, por monopólio, através da implementação dos meios de violência. E
este monopólio não implicava a aceitação dessa prerrogativa por parte da
sociedade. Era um projecto de força contra a sociedade, mas a longo prazo foi
necessário que essa prerrogativa fosse legitimada pela sociedade. E é por isso
que entra todo esse processo democrático que vai permitir que o uso da
violência pelo Estado seja aceite pela sociedade. Então, esse é que é o
problema que nós tivemos em 1975. Tivemos um projecto político que era na
verdade um Estado que queria formar um Estado-Nação, mas formá-lo é preciso
esse elo de legitimação. E esse elo de legitimação sempre foi muito fraco. Na
altura, parecia ser mais forte simplesmente porque nós estávamos na euforia da
independência. Mas não é porque havia legitimidade para o projecto ideológico
da Frelimo naquela altura.
Uma das ideias que defende é que a ausência da
alternância política não é necessariamente uma coisa má. E que haja coerência
no agir político, e na força da sociedade. Disse também que a dominação de um
partido não tem de ser uma coisa necessariamente má. O que quer dizer com isso?
Eu acho que o país precisa de um ambiente mais
democrático do que é agora. Naturalmente, que em qualquer manifestação política
há sempre vícios. Por exemplo, o facto de termos um partido que está há muito
tempo no poder cria os seus vícios. Mas o problema não é nós termos partido
político a ganhar sempre as eleições. O problema é toda a cultura política que
nós temos. Nós podemos alterar os governos e continuarmos com a mesma situação
que algumas pessoas criticam.
A Renamo levantou a questão da regionalização,
centralização, ou seja, da necessidade de termos o poder mais próximo das
pessoas. No seu ponto de vista como reforçar a legitimidade do poder público
junto dos governados num país tão extenso, pobre e sem estruturas de base como
o nosso?
A pobreza não é o problema. Muitas vezes a
forma como a gente coloca as coisas sugere um problema falso. Aquando da
introdução das autarquias eu defendi a ideia de que era preciso arriscarmos
mais democracia. E não fazer esse gradualismo que durante muito tempo foi visto
como a melhor forma de proceder. E eu dizia que nós tínhamos que ter a coragem
de devolver o poder ao nível mais local. É justamente porque o país é grande
que o poder precisa ser devolvido às instituições locais. Também não percebo a
lógica de termos governadores provinciais indicados pelo Presidente. Eu acho
que o governador provincial devia ser indicado pela assembleia provincial. Se é
que existe a necessidade de eles existirem. Eu sei que um dos argumentos é a
questão da representatividade do Chefe de Estado. Mas para mim esse argumento
não é válido, porque toda a instituição do Estado representa o Chefe de Estado.
E o Chefe de Estado é representante do povo, então onde está o povo que o Chefe
de Estado está representado. E o contrario também. O segundo ponto é que nós
temos uma organização política das regiões em Moçambique que é extremamente
problemática, sobretudo no que diz respeito à relação entre o governador e as
assembleias provinciais. O último e terceiro ponto que gostava de avançar é que
houve nos últimos tempos essa coisa da Renamo querer não só criar províncias
autónomas como também inclusivamente dividir o país. Penso que nós precisamos
de alguma legislação que conte com essa possibilidade e permita as pessoas movimentarem-se
no sentido de se separar, se o quiserem fazer. Porque como eu disse, nós somos
um acidente histórico e geográfico, então não há nenhuma lei da natureza que
diz que Moçambique está condenado a ser sempre Moçambique do Rovuma ao Maputo.
Mas essa ideia de separação, de dividir, de
regionalização, sobretudo a nível do poder instalado, não é recebida de bom
grado. Se a legislação criar espaço para essa desagregação não se corre o risco
de ferir um projecto político que existe em Moçambique?
Sim, corre-se esse risco. E eu fico contente
que o governo se sinta incomodado com essa possibilidade. Porque mostra também
o compromisso que ele tem com o país como um todo. E não há nada demais nisso.
O que eu estou a dizer é que em política real temos que contar com esse tipo de
coisas. Nós precisamos de mecanismos que nos possa permitir decidir sobre essa
questão. Aparecer alguém a dizer que eu já estou farto de ver a minha província
como parte de Moçambique, eu quero sair daqui. Essas são as tais regras de jogo
que estou a falar. Não precisamos de um pacto social para manter alguém numa
situação que não lhe agrada. Então nós temos que contar com isso. O que podemos
fazer é ter prudência, pois apesar de tudo um país é uma coisa séria. Temos de
garantir que esses mecanismos de separação sejam os mais difíceis possíveis.
Não acha que existe o receio da
descentralização acabar com as zonas de influência política?
Pode ser que haja isso, e para mim é natural
devido à própria estrutura do país. Ter o poder do Estado é uma prerrogativa
muito grande. O multipartidarismo trouxe certas vantagens. De modo que é
natural que aquelas pessoas que já detêm o poder do Estado tenham receio de
perder esse poder, ao se descentralizar. Mas eu acho que o problema está na
própria concepção política que nós temos de achar que o Estado existe para
fazer as coisas para as pessoas.
Mas não deve ser essa a concepção, o Estado
não está para servir as pessoas?
Não é que não deve ser. É minha opinião e é
uma opinião política. Eu acho que a melhor concepção do Estado que nós podemos
ter é aquela que limita as prerrogativas do Estado apenas ao estabelecimento da
ordem, a criação, naturalmente, das infra-estruturas, mas que se envolva o
menos possível na vida das pessoas. Quando uma pessoa tem a concepção de que o
Estado tem que fazer tudo, e uma outra aparece a dizer que tem que
descentralizar, essa pessoa vai sentir-se castrada naturalmente.
Apontou uma vez que a sua maior esperança é a
competência, a qualidade do debate. Disse que isso lhe preocupa muito. Aliás,
suspendeu as suas análises, os comentários que fazia no seu blog, alegando ter
sido mal interpretado. Que reflexos esta falta de qualidade da nossa discussão,
a falta de qualidade que muitas vezes tem levantado do nosso ensino é o factor
crítico para o desenvolvimento do nosso país?
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